Editorial da Voz de Lamego: Inúteis servos, fizemos o que devíamos
Na apresentação do seu novo livro, o nosso Bispo, D. António Couto, expôs um contraponto do “outro” que sou interpelado a acolher, a reconhecer, a servir, pois no rosto do outro irrompe o Outro. Alguém com uma arma que suscita medo e me obriga a servi-lo não é um senhor, um “outro”, é um tirano. Um pobre que me estende a mão, obriga-me a debruçar-me sobre ele, mas esse é o verdadeiro “senhor” a quem sirvo, de quem sinto compaixão, que irrompe na minha vida e suscita o meu olhar e me liberta do meu egoísmo.
A postura de Jesus encaminha-nos para o pobre. Jesus faz-Se caminho para nós e nesse caminho aponta as prioridades e as opções. Há oito dias, víamos, seguindo as reflexões do Pe. Luigi Epicoco, que Deus pede-nos que ocupemos o último lugar porque somos filhos, não se pediria isso a um hóspede. Tratamos o hóspede o melhor possível, como filhos do dono da casa, como donos na casa, podemos abdicar do que nos pertence precisamente porque podemos e queremos fazê-lo.
Voltamos a inspirar-nos no texto de Epicoco que nos desafia a descentrar-nos de nós, para cuidarmos, para amarmos e servirmos o outro. Quem está demasiado preocupado consigo não tem tempo, nem disposição, nem disponibilidade para o outro. “Quem é inseguro (em sentido patológico) não se entrega, porque está demasiado ocupado a tratar de si próprio, a tratar de sobreviver a todo o custo. Este não é o cuidado de quem ama, são os cuidados de quem, apenas, sobrevive, de quem não consegue viver as relações com os outros senão na medida em que lhe interessam”.
Uma das figuras que melhor exemplifica este descentramento é São José. Vale a pena deixar-nos guiar pelas palavras de Epicoco: “Hoje em dia faltam pessoas que saibam viver como São José, pessoas capazes de cuidar do mundo, de o guardar e de o amar, como um pai ama o filho, tornando-o livre e não dependente. Se tivéssemos de arranjar uma referência sã para sermos cristãos, ela seria José de Nazaré, um homem silencioso e criativo. É um homem concreto que encontra soluções… e depois afastou-se, após cumprir o seu dever… agir e desaparecer. Não o desaparecer de quem, depois, se entristece por ninguém ter reconhecido o seu trabalho, mas de quem não precisa de nada e, por isso, se vê como inútil, isto é, não precisa de lucro, não procura o lucro. Não deveríamos procurar a gratidão dos outros, deveríamos experimentar uma profunda alegria em nos afastarmos, em nos sentirmos verdadeiramente inúteis. «Inúteis», no Evangelho, significa sentirmo-nos tão amados e valiosos ao ponto de não termos de procurar outro ganho. Neste sentido, dizemos «inútil»: não no sentido de não valermos nada, mas que valemos tanto e nos sentimos tão cheios deste valor que não precisamos de procurar mais nada para nos satisfazer ou que nos digam que temos valor. Este motivo pelo qual nos podemos permitir ser inúteis”.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 90/10, n.º 4545, 4 de fevereiro de 2020
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