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Posts Tagged ‘Pe. Manuel Gonçalves’

Editorial Voz de Lamego: A ganância do padeiro

A ganância prende-nos às coisas e afasta-nos das pessoas, da vida. A ganância e a avareza.

Por um lado, aspirar a algo mais e melhor é defensável, saudável e justo. E sobretudo quando conseguimos pensar em nós e nos outros. Já dizia o filósofo, que o homem ultrapassa infinitamente o homem (Blaise Pascal), na ambição de ser mais, de melhorar sempre, de alcançar novos objetivos, de transformar o mundo, fazendo que seja casa de todos e para todos.

Adam Smith apresenta o sistema económico a partir da ganância do padeiro, parafraseado por D. Tolentino Mendonça: “Devemos o nosso pão fresco não ao altruísmo do padeiro, mas à sua ganância. É graças à ambição do ganho, que os bens de que precisamos chegam às prateleiras dos supermercados… Esse dado é, de resto, comummente aceite. O facto que hoje se coloca, sempre com maior urgência, é, porém, de outra natureza. Claro que não perde validade a justa expectativa de que a atividade laboral produza o seu lucro, mas o que se coloca às nossas sociedades é a questão da sua capacidade para resolver, ainda que de modo não completamente perfeito, os desequilíbrios que elas próprias geram e que ameaçam a sua preservação… A difícil situação atual mostra-nos, sem margem para hesitações, como se tornou urgente e vital introduzir alternativas de fundo num campo que é económico e financeiros, mas também é humano e civilizacional…”

Por outro lado, como sói dizer-se, tudo o que é em excesso acaba por descambar, tornando-se destrutivo. É ditado bem antigo: a virtude está no meio; nem oito nem oitenta; nem tanto à terra nem tanto ao mar; com conta, peso e medida. O justo equilíbrio, qual fiel da balança, não será fácil de alcançar. Há uma fórmula: o amor! A compaixão. O colocar o outro antes! Se todos procedermos do mesmo modo, o modo de Jesus, então todos seremos beneficiários e beneméritos uns dos outros.

A conversão nunca é de fora para dentro. É sempre interior, espiritual, pessoal. É conhecida a história de um pai com muito trabalho para fazer e que tinha de cuidar do filho, sempre muito ativo. Entrega-lhe um conjunto de peças para completar o mundo (puzzle). Julgou o pai que, durante um bom pedaço, o filho estaria entretido. Instantes depois, o filho aparece com o mapa do mundo completo. O pai, boquiaberto com tanta rapidez, pergunta-lhe como é que fez para ser tão rápido. Bom, respondeu o filho, por detrás estava a figura de um homem, construí o homem e o mundo ficou construído também. A lição é que não se pode mudar o mundo sem mudar pessoas. Do mesmo modo, a conversão, a mudança de vida, passa pela vontade, pela decisão firme, interior, em caminhar em determinada direção. Claro que o ambiente também pode ser facilitador. Na lógica de Ortega Y Gasset, o homem é ele e as suas circunstâncias.

Jesus, no seu ministério missionário, desafia cada um de nós a gastarmo-nos a favor dos outros, a darmos-lhe de comer, a curá-los, a renunciar a si, para que os outros sejam salvos, a servir, tal como Ele que veio para servir e dar a vida por todos. A interpelação de Jesus é, antes de mais, melhor, sempre, para mim. Para ti. Para nós. Nunca para o outro! Não se pode impor a salvação, não se pode impingir o projeto do reino de Deus preconizado por Jesus.

Alguém do meio da multidão, ouvimos hoje no Evangelho, diz a Jesus: «Mestre, diz a meu irmão que reparta a herança comigo». A resposta de Jesus não se faz esperar e é elucidativa: «Amigo, quem Me fez juiz ou árbitro das vossas partilhas?». A propósito, diz o santo Padre: “Acumular bens materiais não é suficiente para viver bem, porque, diz Jesus, a vida não depende do que se possui (Lc 12, 15). Em vez disso, depende de bons relacionamentos: com Deus, com os outros, e também com aqueles que têm menos”.

Deus não se intromete na nossa responsabilidade humana. Não somos marionetas. Sabemos o caminho? A primeira opção, é avançar, seguir! Sabendo que o caminho nos conduz a Deus e nos salva, então, sim, poderemos chamar os outros, desafiá-los, deixar que a nossa vida transpareça a salvação que nos é dada por Jesus Cristo. Não pedimos a Deus para que faça o que nos compete fazer.

A avareza faz-nos perder o melhor da vida, a alegria da partilha, do trabalho honesto, da comunhão com os outros nos dias de chuva e nos dias de sol. Claro que Deus dá-nos o pão nosso de cada dia, contando com o nosso trabalho e na certeza que o pão que pedimos e trabalhamos também nos compromete com a partilha e com a comunhão com quem não pode trabalhar.

Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/37, n.º 4668, 3 de agosto de 2022

Editorial Voz de Lamego: Apressadamente ao encontro de Isabel

O tema escolhido pelo Papa Francisco para a Jornada Mundial da Juventude, a viver em Portugal, de 1 a 6 de agosto de 2023, remete-nos para a Visitação de Nossa Senhora à sua prima santa Isabel: «Maria levantou-se e partiu apressadamente» (Lc 1, 39). Logo depois da anunciação, Maria põe-se a caminho, sem calcular dificuldades, sem se prender às comodidades de ficar.

No próximo Domingo, 24 de julho, comemora-se o II Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, em véspera da memória litúrgica dos avós maternos de Jesus, são Joaquim e santa Ana. Como tema para esta jornada, o santo Padre escolheu a perícope de um salmo (92, 15): “Dão fruto mesmo na velhice”. É constante a preocupação do Papa em alertar para o descarte a que são entregues muitos idosos, sendo esse um dos dramas, e dos pecados, que impedem uma efetiva fraternidade e, ao mesmo tempo, a sadia convivência de gerações, interdependentes, e que poderiam beneficiar das riquezas e do saber uns dos outros. Queiramos ou não, o que somos, o que temos, a evolução científica e tecnológica, a mobilidade, a globalização informática, deve-se a gerações do passado, cuja inteligência e sabedoria foram colocadas ao serviço da transformação da sociedade. Uns mais altruisticamente, outros mais egoisticamente, mas, ainda assim, a eles se deve o caminho percorrido e as portas e avenidas que nos permitem prosseguir. Claro que o caminho também gerou acidentes e também abriu portas que facilitam a destruição massiva da criação. Está (também) nas nossas mãos acolher e potenciar as descobertas, invenções, criações que tornam mais leve a cruz de muitos.

Vale a pena recuperar a mensagem do Papa Francisco: “Muitas pessoas têm medo da velhice. Consideram-na uma espécie de doença, com a qual é melhor evitar qualquer tipo de contacto: os idosos não nos dizem respeito – pensam elas – e é conveniente que estejam o mais longe possível, talvez juntos uns com os outros, em estruturas que cuidem deles e nos livrem da obrigação de nos ocuparmos das suas penas. É a «cultura do descarte»: aquela mentalidade que, enquanto nos faz sentir diversos dos mais frágeis e alheios à sua fragilidade, permite-nos imaginar caminhos separados entre «nós» e «eles». Mas, na realidade, uma vida longa – ensina a Sagrada Escritura – é uma bênção, e os idosos não são proscritos de quem se deve estar à larga, mas sinais vivos da benevolência de Deus que efunde a vida em abundância. Bendita a casa que guarda um ancião! Bendita a família que honra os seus avós!”

Na sua tese de doutoramento, “A presença de Deus nos caminhos dos homens”, o Pe. Diamantino Alvaíde aponta para uma pastoral integral, em que as iniciativas pastorais abarquem as diferentes gerações. “Desde o mais velho ao mais novo, desde o mais afastado ao mais incluído. A intergeracionalidade e o trabalho em rede, entre pessoas e estruturas pastorais são, talvez, a urgência mais gritante da nossa realidade eclesial”.

Na cena da Visitação, Maria vai apressadamente ao encontro de Isabel para lhe levar Jesus, para lhe comunicar a Boa Nova que transporta consigo. Nossa Senhora prontifica-se para auxiliar Isabel, mulher de idade avançada, cuja gravidez, não prevista e fora de tempo, pode envolver maiores dificuldades. O nosso Bispo acentua, não tanto a ajuda, mas a “evangelização”. Para ajudar, familiares e vizinhos; Maria apressa-se para levar o anúncio alegre da Boa Notícia que acolhe no seu ventre.

Aqui se inserta a pastoral integral e sinodal, o Evangelho destina-se a todos, também aos menos jovens. Mas não basta que os idosos sejam destinatários da pastoral, é imperioso que tenham voz ativa, contribuam com sugestões e sejam envolvidos em todo o processo. Na peregrinação dos símbolos da JMJ, diga-se, meritoriamente, tem-se procurado que todos sejam incluídos, e daí a visita a Lares e centros de dia, a escolas e estabelecimentos prisionais. É, pelo menos, um bom sinal. Que ninguém fique esquecido!

Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/36, n.º 4667, 20 de julho de 2022

Editorial Voz de Lamego: A vida, a vinha e a paciência do agricultor

Lançar as sementes à terra… plantar a vinha… exige uma grande dose de confiança e de paciência. Os frutos não são imediatos. A vinha, os vegetais e legumes, e muitas árvores de fruta, levam muitos anos a dar fruto. A cultura depende da incerteza do clima. A falta de chuva em alguns períodos do ano pode ser devastadora para certas produções, o trigo, as batatas, a vinha, a azeitona, para as árvores de fruto, para vegetais e legumes. Quando se semeia ou planta, há uma expectativa muito grande em que o ciclo das estações do ano cumpra com a tradição. Quantas vezes é precisa a água, chuva, e vem sol e seca? Ou na estação do sol e do calor, vem chuva, trovoada e granizo?

Cada ano, o agricultor, no tempo certo, volta a semear, a plantar, a cuidar dos campos e das árvores! Se a produção foi proveitosa no ano anterior, espera que no novo ano haja ainda melhor produção, em quantidade, qualidade e preço de venda. Se o ano foi mau, a preocupação por um ano bom aumenta e também os cuidados. Numa época de maior religiosidade (popular), as comunidades renuíam-se para pedir a chuva, mesmo não sendo possível em simultâneo o sol na eira e a chuva no nabal. O Missal continua a subsidiar, e bem, estas preces. Pela chuva: “Senhor nosso Deus, em quem vivemos, nos movemos e existimos, concedei-nos a chuva necessária, para que, ajudados pelos bens da terra, aspiremos, com mais confiança aos bens do céu”. Mas, logo a seguir, também a oração pelo bom tempo, que se pressupõe, tempo menos chuvoso e/ou menos tempestuoso: “Deus eterno e todo-poderoso, que nos purificais com as provações, e, com o vosso perdão, nos salvais, concedei-nos tempo sereno e favorável, a fim de podermos usar os benefícios da vossa bondade para vossa glória e nossa salvação”.

A vinha, como a agricultura em geral, exige um trabalho contínuo, na atenção a todos os fatores, ao clima, às pragas, ao solo… Nem tudo depende do agricultor (viticultor). Também assim a vida, nem tudo depende de nós. Há fatores externos e internos que nos escapam, por mais que gostássemos de ter um controlo total e permanente sobre tudo o que nos diz respeito.

Por ocasião da plantação da vinha, as vides plantadas são regadas, para criarem raízes e se agarrarem à terra. Precisam de água e de terra, mas também crescem e se desenvolvem na adversidade, na terra pedregosa, nos socalcos do Douro!

Quando as vides ganham raízes, o viticultor deixa de as regar. Não há uma regra única, pois em tempos de grande seca é possível, e talvez necessário, regar as vinhas e há quem tenha sistemas de rega. Porém, dizem alguns entendidos, deve evitar-se a rega e deixar que as raízes se esforcem por encontrar água e/ou humidade. Se se regam, as videiras tornam-se preguiçosas, e as raízes, em vez de se enraizarem em fundura, tenderão a fixar-se mais à superfície.

É um paralelismo incrível com a vida humana! Os seres humanos, contudo, são os seres vivos mais dependentes, ao longo de toda a vida, também nos inícios. Na atualidade, esta dependência é também querida e acentuada pelos pais, pelo cuidado e proteção constante, evitando todas as variáveis ou tentando controlá-las. Resulta do amor (e também da posse?) dos pais pelos filhos. O desejo, sincero e defensável, de proteger os filhos de toda a dor e sofrimento, e das contrariedades da vida. Porém, tal como em relação às videiras, é necessário que as crianças e os adolescentes não sejam substituídos nas suas buscas e aprendam a enfrentar as adversidades, pois nem sempre os pais estarão por perto, e precisam de ganhar defesas. É curioso, como os pediatras, e os especialistas em geral, defendem que as crianças não sejam colocadas numa redoma de vidro, mas, pelo contrário, sejam “expostas” à terra, a ambientes menos “saudáveis”, no convívio com outras crianças, para irem ganhando defesas para o futuro…

Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/35, n.º 4666, 13 de julho de 2022

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Editorial Voz de Lamego: A vida, a vinha e o vinho (generoso)

A diocese de Lamego é território de bons vinhos, não estivéssemos numa das regiões demarcadas mais antigas e mais conhecidas. Vinho generoso (tratado, fino, do Porto), que deu fama à região, mas também vinhos de mesa, brancos e tintos, vinho espumante. O pão não pode faltar à mesa dos portugueses, nem o vinho pode faltar às festas de verão, e das outras estações do ano, a casamentos e batizados, a aniversários. Mesmo com a proliferação de outras bebidas, o vinho continua a ser como que a base para as festas dos adultos!

Na Bíblia, a vida futura (o reino de Deus) é comparada a um banquete: “Sobre este monte, o Senhor do Universo há de preparar para todos os povos um banquete de manjares suculentos, um banquete de vinhos deliciosos: comida de boa gordura, vinhos puríssimos” (Is 25, 6).

No Evangelho de São João, o início da vida pública de Jesus acontece nas Bodas de Caná. Maria, Sua Mãe, é convidada. Jesus e os discípulos também estão entre os convidados. A determinada altura, Maria dá-se conta que está a faltar um dos ingredientes indispensáveis para a festa, e vai dizê-lo a Jesus: “Não têm vinho”. Na aparente relutância de Jesus, a confiança de Maria que vai ter com os serventes e lhes diz: “Fazei tudo o que Ele vos disser”. Jesus manda que encham de água seis talhas, destinadas à purificação dos judeus, e manda que distribuam… a água transformada em vinho (Jo 2, 1-12). E o vinho é de primeira apanha! É possível fazer vinho sem uvas, mas não sem água! A qualidade e a abundância do vinho, fruto da bênção e da ação de Jesus é também antecipação e sinal de outra transformação: o vinho que se transformará no Seu sangue, abundância da vida nova e da Sua presença entre nós ao longo do tempo.

Que tem a ver o vinho com a vida? Muito! Além de nos convocar para a festa e para a partilha, ajuda-nos a perceber as relações entre as pessoas, também no seio dos casais, das famílias e da comunidade. A não ser alguém já “viciado”, a bebida é um convite à confraternização, à cumplicidade. A bebida desinibe e, não sendo em excesso, coloca as pessoas mais à vontade. Sendo vinho generoso, a amadurecer num pipo, precisa da vigilância do “vinhateiro”, que vai acrescentando mais vinho para não correr o risco de um dia encontrar o pipo seco! Assim, na vida, precisamos de ir acrescentando momentos, celebrações, encontros, amizade, para não ficarmos perdidos, sozinhos, a definhar! Precisamos dos outros e da sua companhia!

Por outro lado, quando o vinho, sobretudo em garrafa ou garrafão, é agitado, é necessário deixar que assente. A vida também precisa de tempos de repouso, paragem, reflexão, para que a turbulência (e as dificuldades) de momento não ofusquem a serenidade, o sentido e a confiança no futuro e nas pessoas. E, tal como vinho, a vida também precisa de respirar. Respirar e expirar o odor de Cristo, o sopro do Espírito.

A imagem da vinha está também muito presente na Sagrada Escritura. Isaías narra o cântico de amor à vinha, que é a casa de Israel, com todos os cuidados que Deus teve com ela: lavrou-a, limpou-a das pedras, plantou-a de cepas escolhidas, protegeu-a, erguendo uma torre ao centro e um lagar, vedou-a. O natural é que viesse a dar uvas, mas só deu agraços (cf. Is 5,1-7; Sl 79). Jesus utiliza a mesma imagem para falar do Reino de Deus.

O relacionamento num casal, na família, na comunidade, com os amigos precisa de ser cuidado em todo o tempo… é como a vinha, logo que acaba a vindima começa um novo ciclo: a poda e a empa, o despampar, a atenção ao “choro” das vides, às doenças que podem acontecer, ao clima, aos vários tratamentos, a poda em verde, tirando alguns ramos que não interessam e, posteriormente, cortar alguns cachos em excesso, potenciando a qualidade dos que ficam. Na vida precisamos deste cuidado permanente, para que o decorrer do tempo e as dificuldades não destruam o amadurecer do fruto…

Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/34, n.º 4665, 6 de julho de 2022

Editorial Voz de Lamego: Caim e Abel, irmãos nossos

«Onde está o teu irmão Abel?» Deus questiona Caim pelo seu irmão e responsabiliza-o. A resposta de Caim preocupa: «Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?» Na verdade, é uma resposta que continuamos a dar ou a viver. O tempo que atravessamos traz-nos muitas histórias (reais) de indiferença, desprezo, exclusão, violência, conflito.

Deus chama à razão Caim: «A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim» (Gn 4, 8ss). Caim sujeita-se às consequências dos seus atos, do seu mau proceder, contudo, Deus marca-o com um sinal para que ninguém lhe faça mal. A história de Caim e de Abel é uma história de infortúnio, mas também de esperança e de compromisso.

A história dos dois irmãos traz duas conceções de vida antagónicas: a vida das “cidades”, sedentária, e a vida do campo, nómada. As duas formas de vida estão presentes no povo de Israel. Alguns defendem que o povo não se deve fixar, mas estar sempre em deslocação, lembrando que Abraão é um “arameu errante”, sem-terra. Outros, pelo contrário, sustentam a ideia de uma terra, dada por Deus em herança, ao seu povo, cumprindo a Sua promessa. O relato de Caim e Abel faz a opção clara pela “errância” do povo, predominando o pastoreio em vez a agricultura. Esta fixa-se na terra. Aquela avança de terra em terra.

Olhando para a história da humanidade de todos os tempos, verifica-se que a violência gratuita, os fratricídios (irmãos que matam irmãos) são frequentes: povos que se aniquilam, irmãos que guerreiam pela herança, que se matam por ciúmes e inveja, umas vezes por um pedaço de terra, outras vezes por uma ninharia. Ainda que possa haver sempre o ideal da reconciliação.

A guerra imposta pela Rússia à Ucrânia é mais um episódio infeliz como a desconfiança e o medo, o egoísmo e prepotência, conduzem à violência, à imposição de ideais e vontades, recorrendo ao poderio militar. A história de Caim e Abel assume e faz-nos visualizar a realidade histórica.

Mas, infelizmente, histórias de violência familiar repetem-se todos os dias. Fomos surpreendidos pela morte de uma menina com três anos, em Setúbal. À posteriori podem ver-se descuidos, desatenções, demissões. A família, que deveria ser espaço seguro, de vivência do amor, de cuidado e proteção, afinal não garantiu a vida desta menina. Muitas pessoas se juntaram para “julgar”, condenando, movidas pela revolta em relação a uma situação que não deveria ter acontecido. Mas onde estávamos antes de acontecer mais esta desgraça? Onde estavam os vizinhos, a família, os amigos? Onde estavam os que vieram depois?

Na história bíblica há um rasto de esperança. Apesar da infidelidade humana, Deus acredita, Deus aposta no homem. Caim matou o irmão. Deus reafirma, e a fé também, o mandamento: “Não matarás”. Quando alguém é morto, o “normal” é a vingança, a morte do agressor. Porém, se a justiça é necessária, a vingança é dispensável, pois só gera mais violência e não suprime a perda nem a ofensa. Caim é marcado com o sinal de Deus que impede que outros possam agir de forma violenta sobre ele. É uma história de amor e de salvação. Deus quer o nosso bem, mesmo quando e apesar de nos desviarmos do bem.

Caim permanecerá como uma figura do lado mais obscuro que há em nós, mas em simultâneo na certeza que a descoberta de Deus nos conduz à salvação.

Vale a pena registar e mastigar as palavras de são Paulo: «Pelo amor, fazei-vos servos uns dos outros. É que toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: ‘Ama o teu próximo como a ti mesmo’. Mas, se vos mordeis e devorais uns aos outros, cuidado, não sejais consumidos uns pelos outros» (Gál 5, 14-15).

Quando a guerra, a violência, os conflitos estão distantes, sossegamos porque não é (ainda) connosco! Mas, mais longe ou mais perto, os outros dizem-nos respeito e o que fazem ou deixam de fazer afeta-nos, se não mais cedo, mais à frente. Como cristãos, esta consciência deve ser ainda mais viva, pertencemo-nos, somos responsáveis pelos outros.

Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/33, n.º 4664, 29 de junho de 2022

Editorial Voz de Lamego: Dai-lhes vós de comer

Com a guerra imposta pela Rússia à Ucrânia, acresce um problema associado à guerra, a fome. As guerras, ao longo da história, como lembrou D. António Couto, na Lapa, no passado dia 10 de junho, já matou 3 biliões e 800 milhões de pessoas. A fome, por sua vez, continua a matar milhares de pessoas. Associada à guerra, a fome mata ainda mais pessoas.

Por um lado, a escassez de alguns alimentos, mormente cereais exportados da Ucrânia para muitos países e que, agora, em virtude das dificuldades ou impossibilidades de escoamento, aumenta exponencialmente o preço dos mesmos. Por outro lado, também os combustíveis (fósseis) subiram em flexa, devido aos preços exigidos pela Rússia ou às sanções económicas que impedem ou diminuem a disponibilidade aquisição. A guerra mostrou uma interdependência entre povos, não apenas na Europa ou no Ocidente, mas em todo o mundo. Os mais pobres são os primeiros a pagar a fatura da escassez.

Se folhearmos os jornais ou fizermos uma busca na internet, em sites fidedignos, veremos que os números são verdadeiramente assustadores, referidos a crianças. O número de pessoas que vive abaixo do limiar da pobreza é dramático. O dinheiro investido em armamento, como o que se está a verificar atualmente, erradicaria a pobreza na maioria dos países. Para erradicar a pobreza investem-se milhares de euros / dólares, para armamento investem-se biliões!

“A cada cinco segundos, morre no mundo uma criança com menos de 15 anos. As crianças dos países com a mortalidade mais alta têm até 60 vezes mais probabilidade de morrer nos primeiros cinco anos de vida do que as dos países com mortalidade mais baixa, segundo o relatório da ONU” (Unicef, 18 setembro 2018). “Uma criança morre a cada 10 minutos por falta de alimentos no Iêmen” (ONU News, 24 de setembro de 2021). “Mais de cem mil crianças estão em risco de morrer de fome em Tigré. Os números da subnutrição na região, que foi a mais afetada pela grande fome de 1984, aumentaram dez vezes, segundo estimativa da Unicef. Responsáveis pedem acesso ao local para entrega de ajuda alimentar urgente” (Público, 30 de julho de 2021).

A pandemia, as alterações climáticas, os conflitos violentos estão a multiplicar a fome em todo o mundo, não se vislumbrando sucesso para os diferentes projetos de erradicação da pobreza. A guerra na Ucrânia é só mais um triste e lamentável acontecimento que faz perigar a vida de milhares das pessoas, trazendo inquietação, revolta, medo, aumento do custo de vida, e desatenção aos pobres e excluídos, criando novas faixas de pobreza… o que, por sua vez, gerará mais conflitos.

Não podemos fazer tudo. Mas há sempre alguma coisa que poderemos fazer para ajudar, não apenas os que estão longe, mas os que vivem perto.

Na solenidade de Corpus Christi, em Portugal, celebrada na quinta-feira, 16 de junho, e em muitos países no último Domingo, fomos presenteados pela narração da multiplicação dos pães (Lucas 9, 11b-17). No evangelho, Jesus insinua-Se como o alimento para todos. Alimento abundante, que sobeja para que possa ser partilhado por outros, pelos que estão ausentes. Os apóstolos veem (sobretudo) o número: muitas pessoas, poucos alimentos, dinheiro insuficiente para tanta gente. Como é verdade ainda hoje: tanta gente que não tem como alimentar-se! A riqueza nas mãos de uns poucos. Jesus compromete-nos: «Dai-lhes vós de comer». Tanta gente. Cinco pães e dois peixes. Ontem como hoje. A questão dos números é relativa. Também hoje podemos operar verdadeiros milagres, pela partilha. Quando partilhamos do pouco que temos, dá para mais, dá para muitos, dá para todos. Deus conta connosco, com os nossos cinco pães e dois peixes e conta que sejamos nós a distribuir. Na vizinha Espanha, foi aprovada uma lei contra os desperdícios de alimentos. A ONU afirma que mais de um terço dos alimentos produzidos é desperdiçado. Pode incentivar outros países, e a sensibilizar as pessoas, a fazerem o mesmo. O excesso de desperdício é um atentado à escassez alimentar de muitas pessoas, em muitos países. Passa também por aqui a multiplicação dos pães: a partilha solidária.

Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/32, n.º 4663, 22 de junho de 2022

Editorial Voz de Lamego: no Corpo de Cristo…

Ligamo-nos espiritual e afetivamente, mas a partir do nosso corpo que nos identifica e nos diferencia dos outros, limitando-nos fisicamente, com fronteiras no aquém da nossa pele, riqueza que nos permite situar-nos diante dos outros. Somos CORPO. Não é uma parte separável que possamos dispensar quando nos apetece, mas integra-se na nossa identidade (corporal e espiritual).

Como é que comunicamos uns com os outros? Com a presença (corporal), com a voz, e com o timbre com que falamos, comunicamos com os gestos, com o olhar, com o sorriso, com as expressões do rosto e até com a postura do corpo. Como podemos constatar, o Corpo já é comunicação. Aliás, sem corpo, nem se colocaria a questão da comunicação entre pessoas. Por vezes temos pressentimentos, sentimos o que outro está a sentir, intuímos o que está para suceder, mas de novo as raízes: a estrutura das emoções, dos sentimentos e do pensar está no corpo que somos.

A filosofia grega acentuava o confronto entre a alma e o corpo. O corpo era um entrave à verdadeira vida. O espírito, a alma, tinha que dominar o corpo, até à libertação definitiva. Nas religiões/filosofias orientais vinga a ideia de libertação do corpo pela ascese, pelo ioga, por diversas técnicas, até atingir o nirvana, um estado de (quase) puro espírito, sem dor, acima do mundo material. A perspetiva bíblica é diferente, o ser humano é corpo e espírito. É dom da criação de Deus, que nos dotou de um corpo espiritual, ou de um espírito corpóreo. Não somos um espírito dentro de um corpo, a tentar escapulir como de uma prisão, libertando o espírito, deixando o corpo para trás. Somos PESSOAS, criadas pelos Deus Amor, e que nos quer bem. Em Jesus, é o próprio Deus que vem, e assume um Corpo.

Na idade média, foi ganhando forma a convicção de acentuar o mistério da Eucaristia, a presença real de Jesus na hóstia e no vinho consagrados. Começou pela elevação da hóstia (século XII), para que todos se prostrassem em adoração e pudessem ver o Corpo de Cristo. Era um passo, porém, a Eucaristia continuava “limitada” à celebração da missa e da comunhão, estando prevista a conservação da hóstia consagrada, inicialmente, apenas para as pessoas doentes e ausentes.

No século XIII, a adoração da Eucaristia acentua-se e sai à rua, ganhando progressivamente relevo a Procissão do Santíssimo Sacramento. O desejo de ver a hóstia dá lugar à celebração da realeza de Cristo, a presença do Senhor, que bendiz a cidade e as pessoas.

Celebrar o Corpo de Deus, significa acreditar num Deus que faz caminho connosco. Percorre as nossas ruas e vielas, as nossas estradas e avenidas. Ele encontra-nos onde nós vivemos, onde caminhamos. Deus não é um foragido, que Se esconde, mantendo-se à distância para não Se envolver, mas tem um ROSTO, um CORPO, uma PRESENÇA efetiva e real na nossa vida.

Esta é a vontade de Deus. Gera-nos para uma vida feliz. Dá-nos o Seu Filho, em tudo igual a nós, exceto no pecado, e que assume um Corpo humano, para realizar a vontade paterna. Vive entre nós. É morto. Ressuscita. Pelo Espírito Santo fica entre nós, no Seu Corpo e Sangue. Como dissera na última Ceia, vai morrer, vai para o Pai, e do Pai envia-nos o Espírito. Entrega-Se por inteiro. É-nos devolvido, pelo Espírito Santo na consagração. Sempre que nos reunimos em Seu nome, fazemos o que Ele fez naquela noite. Mais, reunimo-nos para fazermos o que Ele fez em toda a vida, o serviço permanente a favor dos outros. Somos responsáveis uns pelos outros. Celebrar a Eucaristia, como membros do Corpo de Cristo, a Igreja, comungando o Corpo de Cristo, partilhamos Cristo e tornamo-nos guardadores uns dos outros. Não podemos sentar-nos à volta da mesma mesa, unidos no Corpo, e depois sair cada uma para sua casa, para a sua vida, como se tivesse sido um encontro de estranhos e/ou inimigos. Somos responsáveis uns pelos outros. A abundância e riqueza do Corpo de Jesus há de levar-nos a partilhá-lo entre todos, para que a ninguém falte o alimento corporal e espiritual.

Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/31, n.º 4662, 15 de junho de 2022

Editorial Voz de Lamego: O Papa e o cansaço

No passado sábado, 4 de junho, o Santo Padre recebeu um grupo de 160 crianças, que participaram no “Comboio das Crianças”, algumas a viverem em situação de fragilidade pessoal e/ou social. Entre elas, também crianças ucranianas. O encontro com o Papa permitiu um diálogo muito expressivo. Uma das crianças, Catherine, perguntou-lhe se era cansativo ser Papa. Antes, um outro menino, Edgar, perguntou como se sentia sendo Papa. A resposta é clarificadora: “O importante, em qualquer profissão em que a vida nos coloca, é que nunca deixemos de ser nós próprios… como pessoa, se tenho este trabalho, devo tentar fazê-lo da maneira mais humilde e mais de acordo com minha personalidade, sem tentar fazer coisas que sejam estranhas a quem eu sou”.

Veio então a pergunta sobre o cansaço. O Papa respondeu dizendo que qualquer tarefa que realizamos tem uma parte de fadiga, de esforço, sublinhando, por exemplo, que ser pai e mãe é também um trabalho que exige esforço, dedicação, é um trabalho árduo. Porém, “Deus dá força para carregar as próprias fadigas” e é preciso realizá-las “com honestidade, com sinceridade e com trabalho”.

Nem todo o cansaço é igual. Pode ser mais físico ou mais espiritual. Pode ser consequência do esforço ou do desencanto em relação ao trabalho, à vida. Depois de uma jornada de apostolado, Jesus convoca os seus discípulos para o descanso: «vinde a sós para um lugar deserto e descansai um pouco». Na verdade, conclui o evangelista, “eram tantos os que chegavam e partiam que eles nem tinham tempo para comer” (Mc 6, 31).

É bem conhecido o episódio em que Jesus entra em casa de Marta, que se atarefa para Lhe proporcionar, a Ele e aos apóstolos, uma boa refeição, aprimorando o espaço para que possam também descansar. A sua irmã, Maria, senta-se aos Seus pés e escuta a Sua palavra. Perante esta atitude, Marta reclama a Jesus da inação da irmã. Jesus, então, responde-lhe: «Marta, Marta, estás preocupada e alvoroçada com muitas coisas, mas uma só é necessária. Maria escolheu a parte boa, que não lhe será tirada» (Lc 10, 38-42).

Aos discípulos, a ti e a mim, Jesus dir-nos-á para procurarmos, primeiro, o Reino de Deus e a sua justiça, concluindo: «Não vos preocupeis com o amanhã, porque o amanhã preocupar-se-á consigo próprio. A cada dia bastam os seus males» (Mt 6, 33-34). O ideal, e o compromisso, assenta na busca de equilíbrios, entre o descanso, a festa, a descontração e o esforço, trabalho e mesmo sacrifício. Fica sempre mais fácil se, o que fazemos e vivemos, for feito e vivido com gosto, convicção, por amor.

As dificuldades físicas do Papa Francisco e, certamente, como aconteceu com Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, muitos assuntos sensíveis a refletir, rezar e resolver, têm-se tornado evidentes. Víamos o Papa a caminhar com dificuldade, ultimamente temo-lo visto em cadeira de rodas. A pergunta, a que nos referimos, fixa-se mais na missão que no estado físico, mas a resposta abrange a pessoa como um todo e neste caso a pessoa do Papa. Nas dificuldades e contratempos, a certeza que Deus dá a força para resistir, lutar, para prosseguir e, por conseguinte, temos visto o Papa presente, a intervir, a rezar, a rir, a interagir, com a convicção de que todos os momentos são oportunos para expressar a bondade de Jesus Cristo.

«Vinde a Mim todos os que estais fatigados e oprimidos, e Eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para as vossas vidas, pois o Meu sugo é suave e a minha carga é leve» (Mt 11, 28-30). Quando faltarem as forças, confiemo-nos a Jesus, pedindo-Lhe que venha em auxílio das nossas fraquezas.

Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/30, n.º 4661, 8 de junho de 2022

Editorial Voz de Lamego: Neutralidade

Vivemos tempos conturbados. A guerra da Rússia contra a Ucrânia e contra a democracia é só mais um episódio lamentável da cultura da morte, disseminada em guerras, tráfico de pessoas, escravização, trabalho/exploração infantil, fome, prevalência de elites sobre povos inteiros, subjugando-os pela força, ameaça, julgamentos sumários, exílio, perseguição e morte.

A Organização das Nações Unidas (ONU) foi criada com o propósito de evitar as guerras entre nações, procurando também salvaguardar o direito à autodeterminação de cada povo, no respeito pelas leis, pelos Direitos Humanos fundamentais. Apesar dos propósitos, as guerras continuam a multiplicar-se e, no caso presente, a Rússia, com direito de veto, impede qualquer posicionamento mais firme da ONU, além da ameaça nuclear que pesa sobre a Europa.

Uma das palavras que se tem ouvido muito ultimamente é o da neutralidade. A Ucrânia tinha-se mantido neutra, face a ameaças russas de fazer o que acabou por fazer, invasão e agressão militar. A possível entrada na UE e na NATO foram sendo adiadas. Por sua vez, a Finlândia e a Suécia mantiveram-se, igualmente, neutros face a qualquer conflito internacional. Por um lado, nos conflitos poderiam ser mediadores de paz e reconciliação e, por outro lado, garantiriam que não seriam invadidos ou arrastados para algum conflito internacional. O Portugal de Salazar assumiu essa política de neutralidade, durante a segunda guerra mundial, o que lhe permitiu aprofundar o comércio com ambos os lados, ainda que não tivesse evitado a pobreza de muitos portugueses e a escassez de bens alimentares.

À Ucrânia de nada valeu a dita neutralidade. A Finlândia e a Suécia perceberam que a neutralidade mantida nos últimos 50 anos não era garantia para a paz e integridade territorial face ao que aconteceu com a Ucrânia, pelo que já fizeram o pedido de adesão à Nato, o que implicará investimento militar, mas também a certeza que, em caso de conflito com a Rússia e seus parceiros, terão a solidariedade e intervenção militar dos povos que constituem a Aliança (Organização do Tratado do Atlântico Norte).

Deixemos a dimensão mais política, para nos fixarmos no compromisso cristão perante a cultura da morte, a pobreza, a violência, sendo que, em nenhum momento, deixamos de ser “políticos”! Um cristão não pode colocar-se na perspetiva de Pilatos, não pode lavar as mãos face à mentira, às injustiças. O cristão tem de tomar partido. Não importa se é de direita ou esquerda ou do centro, se é progressista ou conservador, tem de ser, acima de tudo, cristão, imitando, em tudo, em todos as situações, Jesus Cristo, colocando-se, sempre, do lado dos mais desfavorecidos. Não é uma escolha entre outras. É a única escolha possível para um cristão. Não podemos lavar as mãos e tornarmo-nos indiferentes ao sofrimento.

Mas como dizia antes, mesmo quem objete a política, não deixa de ser político e será bom que os cristãos também se empenhem na vida política (e partidária), não com o ensejo de usufruir das melhores regalias, mas com o propósito firme de ajudar a melhorar a vida das pessoas e das comunidades.

O Papa Francisco fala da política como uma arte, como um alto serviço à humanidade, quer para atender às necessidades das pessoas, quer para construir pontes de diálogo e de paz. Com efeito, “somos chamados a viver o encontro político como um encontro fraterno, especialmente com aqueles que estão menos de acordo connosco”. Devemos tratar o outro “como um verdadeiro irmão, um filho amado de Deus” o que, por vezes, implica “uma mudança de olhar sobre o outro” e “um acolhimento incondicional e respeito à sua pessoa, sobretudo, para com os que não concordam connosco”. O santo Padre prossegue, dizendo que “se essa mudança de coração não ocorrer, a política corre o risco de se transformar num confronto muitas vezes violento para fazer triunfar as próprias ideias, em busca de interesses particulares e não do bem comum. Não se pode fazer política com a ideologia”.

O cristão não é neutro e nem todas as escolhas são razoáveis… Razoável, para o cristão, é viver ao jeito de Jesus.

Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/29, n.º 4660, 1 de junho de 2022

Editorial Voz de Lamego: Não se perturbe o vosso coração

Há uma semana, o editorial tinha como título: só se vive uma vez. Tinha partido de uma música, conhecida, que passou num momento de festa e confraternização, após o matrimónio do meu irmão Augusto e da minha cunhada Paula. O que a letra sugeria, parece que ganhou um sentido mais premente.

Recuperando um pouco do editorial: “Se nós soubéssemos que amanhã já não estamos (fisicamente) por cá, talvez acelerássemos algumas tarefas e compromissos, para deixarmos resolvido, para vivermos. Como não sabemos, também não o devemos adiar, pois o futuro só a Deus pertence. Ele dá-nos o tempo atual como presente para desfrutarmos, para vivermos, para construirmos um mundo fraterno, que seja casa de todos e para todos. Há quem não viva hoje à espera de viver o amanhã, de melhores dias e melhores circunstâncias que não chegam ou quando chegam já é demasiado tarde”.

Estou certo que o meu irmão viveu dias muito felizes, muito preenchidos, dando o melhor, recebendo o melhor da vida, da família, dos amigos e, especialmente, da esposa. Muitas vezes, e nós padres fazemo-lo quase constantemente, repetimos o desafio a viver o dia de hoje como presente que Deus nos dá, pois não saberemos se amanhã estaremos (fisicamente) por cá. Então, sem medos, sem pressas, sem ansiedade, vivamos! Digamos hoje o que temos a dizer! Amemos hoje, cuidemos hoje, perdoemos hoje, pois o HOJE torna-se eterno.

Quando se aproxima a Sua hora, Jesus prepara e sossega os seus amigos mais íntimos: «Não se perturbe o vosso coração; acreditai em Deus e acreditai em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fosse, ter-vos-ia dito que vos vou preparar um lugar? E, quando Eu tiver partido e vos tiver preparado um lugar, virei de novo e levar-vos-ei comigo, para que onde Eu estou, estejais vós também» (Jo 14 1-3).

As palavras de Jesus só serão compreendidas a posteriori. «Disse-vos estas coisas para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja completa» (Jo 15, 11). E Jesus prossegue, dizendo: «Mas, porque vos disse estas coisas, a tristeza encheu o vosso coração… haveis de chorar e lamentar-vos, mas o mundo alegrar-se-á; vós ficareis tristes, mas a vossa tristeza tornar-se-á alegria… vós agora sentis tristeza, mas Eu hei de ver-vos de novo, e o vosso coração alegrar-se-á, e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria… Até agora, nada pedistes no meu nome; pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja completa… disse-vos estas coisas para que em Mim tenhais paz. No mundo tereis tribulações. Mas tende coragem: Eu venci o mundo!» (Jo 16).

Parafraseando Toltói, a alegria é semelhante para todos, a tristeza cada um a vive à sua maneira. Não seremos capazes de nos colocarmos no lugar dos apóstolos, quando Jesus lhes diz que vai ser morto ou quando Jesus morre de facto. As palavras de Jesus são também para mim, para nós. O anúncio da partida, da separação física gera um emaranhado de sentimentos, um certo entorpecimento… a fé desafia-nos a acolher os desígnios de Deus, mesmo quando são inusitados, quando chegam fora do tempo que julgávamos ter. Jesus volta à vida, ainda que numa dimensão (dinâmica) diferente. Com Ele vivem os que com Ele partem. Assim o creio e assim o espero para o meu irmão Augusto, para que, vivendo em Deus, a Deus reze por todos aqueles que fizeram e fazem parte da sua vida. Agradeço a Deus os momentos que nos deu para apreciarmos a vida, desfrutarmos da presença, agradecermos as pessoas. Como naquele dia, há pouco mais de uma semana, na Sé de Lamego, diante de Deus, abençoando um compromisso para a vida… a mesma vida e a mesma bênção nos liguem ao mistério amoroso de Deus.

Agora a tristeza e o luto, mas logo, a alegria do reencontro, quando Ele vier e nos levar Consigo. Até lá… vivamos agradecidos por tantos momentos, agradeçamos vivendo, como se nunca tivesses partido, porque Deus te quer perto de nós, no nosso coração e na nossa vida. Vida! Sempre. Gratidão e Paz.

Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/28, n.º 4659, 25 de maio de 2022