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Editorial Voz de Lamego: acolher, transformar, enviar

Três verbos que correspondem a um mesmo compromisso de viver a fé cristã como discípulos missionários, em todo o tempo e em todas as circunstâncias, em casa e na rua, na escola, no trabalho e no lazer.
É este o propósito da Missão País que está a decorrer em várias localidades. Na nossa diocese: na semana passada, em Tabuaço; esta semana, em Moimenta da Beira e em Resende.
A ideia nasceu em 2003. Três estudantes universitários, da Universidade Nova de Lisboa, propuseram-se: “1. Entregar parte do seu tempo à missão; 2. Ter na sua faculdade algo que os aproximasse de Deus. Sendo o seu local de estudo o sítio onde passavam uma grande parte do seu tempo, sentiam a necessidade de aí poderem falar sobre Jesus. Assim, seguindo o exemplo da Grande Missionária – Nossa Senhora – deixam tudo e partem com Cristo por Portugal fora. À primeira vista, poderá não ser claro como uma semana de missão poderia satisfazer tal desejo”, mas tem mexido com os jovens que se envolvem e com as comunidades.
Atualmente são mais de 60 missões e cerca de 3500 jovens universitários. Uma semana que se repete. São três anos em cada povoação escolhida e em cada ano três verbos ou três graças, com a presença da Mãe Peregrina que os missionários levam consigo para as escolas, lares, porta-a-porta, para a Igreja, para as diferentes iniciativas.
“A Mãe Peregrina é uma imagem de Nossa Senhora com a forma do Santuário de Schoenstatt.
Através desta imagem, Maria vai ao encontro de quem A recebe, transportando consigo a experiência espiritual que se dá nos Santuários de Schoenstatt. Por isso, distribui a quem A recebe as três graças deste cantinho de oração: acolhimento, transformação e envio. 1) Acolhimento: Sentir-se profundamente acolhido e amado por Deus por meio de Maria. 2) Transformação interior: Pouco a pouco há qualquer coisa que vai mudando em mim pela ação educadora de Maria. 3) Envio missionário: Nossa Senhora impulsiona-nos a sair de nós próprios e ir ao encontro dos outros como missionários no dia-a-dia”.
Devido à pandemia aquele que deveria ter sido o segundo ano, o da transformação, passou para 2022, ainda que no ano anterior tivesse sido mantida a ligação online a lares e a escolas, nomeadamente, neste caso, através da disciplina de EMRC.
A Ação Católica Rural criou um método com três fases: ver, julgar e agir. Ver implica estar atento à realidade e tal atenção permitirá encontrar “casos ou acontecimentos que nos interpelam a realizar uma transformação como cristãos”; julgar leva-nos a olhar para os casos e acontecimentos, tendo em conta os valores e os contravalores, procurando fazer uma leitura em conformidade com os ensinamentos de Jesus; agir é a última fase e que visa melhorar as situações que encontrámos.
A espiritualidade da Missão País é marcada também por um tríptico, não exatamente por três fases, que poderão também estar presentes, mas por três graças que envolvem os jovens missionários nas comunidades onde realizam a missão, mas simultaneamente é um compromisso pessoal de conversão, de transformação, de testemunho.
No primeiro ano, a acentuação vai para o acolhimento, que é recíproco, da comunidade em relação aos jovens, num tempo de diálogo, de partilha da fé e da vida, de aproximação. Os universitários têm vários momentos de oração e de reflexão, como grupo e com a comunidade. No segundo ano, acentua-se a transformação. Poder-se-ia, como ponto de partida, pensar que se tratava de transformar a localidade em que estão em missão, mas esta transformação começa pelos próprios missionários, deixando-se transformar pela fé, ajudados pelas dificuldades e oportunidades que encontram na oração, na introspeção, na relação com os colegas e com as realidades locais. À comunidade pede-se que acolha e que se deixe tocar pela presença, pelo testemunho e pela graça da transformação. O terceiro ano há de dar lugar ao envio e compromisso, para os jovens e para a comunidade.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/15, n.º 4646, 23 de fevereiro de 2022
Editorial Voz de Lamego: Peregrinos da esperança

No ano de 1300, o Papa Bonifácio VIII instituiu o Ano Santo, evocando mais um centenário do nascimento de Jesus, segundo o calendário gregoriano. Posteriormente, em 1350, assumiu a dinâmica bíblica, passando o Jubileu a assinalar-se a cada cinquenta anos, por decisão do Papa Clemente VI. Por sua vez, o Papa Paulo II, com uma Bula de 1470, houve por bem determinar que os jubileus se celebrassem a cada vinte e cinco anos. O Jubileu de 2025 será o 27.º Jubileu Ordinário na História da Igreja. Tem havido outros anos santos extraordinários como o Ano da Fé ou, o mais recente, Jubileu Extraordinário da Misericórdia.
Para este próximo Ano Santo, o Papa Francisco escolheu como tema: “Peregrinos da Esperança”. Com efeito, a vivência da fé, a vocação e missão cristãs, colocam-nos em modo de alegria e de esperança, confiando, com firmeza e clarividência, num Deus que nos é próximo, que caminha connosco e nos garante vida em abundância, no tempo e até à eternidade. A esperança como virtude teologal apoia-se nas promessas de Deus, sancionadas, comunicadas e plenizadas na vida de Jesus Cristo. O mistério da Encarnação traz Deus até nós, não como um estranho, mas entranhando-Se na humanidade e na história. Deus, não apenas nos procura, mas vem ao nosso encontro; não apenas Se insinua, mas deixa-Se ver; não apenas fica perto, mas faz-Se um de nós. É Deus connosco num momento determinado da história. Não é uma ideia abstrata! É Pessoa que enfrenta as fragilidades e as limitações do tempo e do espaço e da condição biológica. Não Se fica pelo difuso e universal, mas concretiza a Sua misericórdia e o Seu amor, em Jesus Cristo, no encontro com pessoas, de carne e osso, com os seus dramas e esperanças, com os seus sofrimentos e os seus sonhos. Jesus partilha a vida connosco. Vive no meio de nós. Carrega em Si os dramas da humanidade. Ensina-nos a humanizar as nossas opções, cumprindo e testemunhando, pela humanização, pela ternura e compaixão, os desígnios de Deus para nós.
No caminho de preparação, viveu-se o Jubileu da Misericórdia, diz o Papa, pois permitiu-nos “redescobrir toda a força e ternura do amor misericordioso do Pai a fim de, por nossa vez, sermos testemunhas do mesmo”.
Entretanto, o mundo foi surpreendido pela pandemia que modificou o nosso modo de viver, fazendo-nos tocar “o drama da morte na solidão, a incerteza e o caráter provisório da existência”. Fomos limitados em muitas liberdades pessoais, familiares, comunitárias; encerraram igrejas, escolas, fábricas, lojas, locais dedicados ao lazer. O sofrimento tornou-se mais visível, o medo, a dúvida e a perplexidade. Os homens e as mulheres da ciência rapidamente encontraram medicamentos de forma a superar a pandemia. Em Carta dirigida ao Arcebispo Rino Fisichella, o Papa manifesta confiança que “a epidemia possa ser superada e o mundo volte a ter os seus ritmos de relações pessoais e de vida social”. Mas avisa: “Tudo isto será possível se formos capazes de recuperar o sentido de fraternidade universal, se não fecharmos os olhos diante do drama da pobreza crescente… que as vozes dos pobres sejam escutadas”.
Uma das características dos jubileus, na Bíblia, era a restituição de bens e da liberdade. Os bens voltavam às famílias de origem, permitindo uma nova distribuição, e as dívidas dos que tinham sido feitos escravos ficavam sanadas, recuperando a liberdade. Por outro lado, o descanso da própria terra!
É tempo de renovar a esperança, de rezar a vida, de agradecer as oportunidades; é tempo de olhar o futuro com o coração aberto e a certeza que Deus nos ama e nos acompanha e fortalece a nossa opção pela verdade e pela caridade. É tempo de abrir as portas, escutar os corações, partilhar os sonhos, colocar os dons a render, condividir os sofrimentos e as alegrias. Parafraseando o Santo Padre, não deixemos que nos roubem a esperança! Construamos um mundo onde todos se sintam irmãos.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/14, n.º 4645, 16 de fevereiro de 2022
Editorial Voz de Lamego: Sem vida própria!

Há pessoas que não têm vida própria, vivem a vida dos outros, em função dos outros, agindo, não segundo as próprias convicções, mas na tentativa, vã, de agradar a uma pessoa, a um grupo, ou, pelo menos, com a preocupação exacerbada de não desiludir. Isto não é viver, no sentido mais autêntico do que entendemos por viver: desenvolver dons e talentos, orientar a vida pelas convicções que se cultivam, aprofundam e amadurecem ao longo do tempo, criando pontes de diálogo e laços de amizade e proximidade, deixando marcas no mundo, a começar pelas pessoas, marcas de bondade e de amor.
Vamos por partes. “Não ter vida própria” tem, pelo menos, duas dimensões distintas ou duas leituras diferentes. Quando a pessoa gasta a sua vida em prol da família, dos amigos, da comunidade, quando vive, mais, em função do trabalho, não é necessariamente algo mau. Alguém não tem vida própria, porque não tem tempo para si mesmo, mas ocupa-a a tratar dos outros, dos filhos, ou dos pais, ou a trabalhar para o sustento e a comodidade da família, ou envolvida em atividades de voluntariado (além da profissão e das lides de casa). Há sempre um “senão”. É necessário que diferentes dimensões da vida sejam preenchidas: o trabalho, o descanso, a família, a festa, a confraternização, o lazer, o voluntariado. Os pais trabalham tanto que não têm tempo para acompanhar os filhos, ir ver deles à escola, terem tempo de qualidade juntos, poderem brincar com os filhos, escutá-los, contar-lhes uma história… talvez possam estar a desperdiçar um tempo precioso que não volta mais. Compreende-se! As necessidades dos filhos, a habitação, a alimentação, encargos e mais encargos e trabalhos precários e mal remunerados, cujos patrões não têm em conta o agregado familiar, mas o indivíduo-trabalhador desligado do seu contexto social, económico e familiar. Mas como os próprios reconhecem, mais tarde, não acompanharam o crescimento dos filhos e, na atualidade, já não se compreendem mutuamente e, agora, são os filhos que não têm tempo nem disponibilidade, pois têm pressa de viver as suas vidas.
Valorizar a família implica ter tempo para estar em casa e amadurecer a cumplicidade entre os seus membros. O trabalho é essencial se englobar o descanso, a festa, as celebrações familiares. E será ainda mais essencial se predispuser a pessoa e a família para o voluntariado e para a envolvência na vida da comunidade. Isto vale para a interação com a sociedade como vale para a pertença à comunidade eclesial.
“Sabeis quem vive somente graças aos outros? Os vírus. Os vírus não têm vida própria, têm de se agarrar a alguém”. É uma frase de uma série televisiva – DOC – baseada em factos reais: um médico italiano que perde as memórias de 12 anos e quando volta a exercer, mudando de hospital, como que recomeçando a vida profissional.
Sem vida própria! Num sentido negativo, quando uma pessoa vive em função do que os outros pensam ou dependente do sucesso ou do fracasso dos outros para se sentir feliz e realizada. Há na natureza alguns exemplos curiosos, como o cuco. Este procura o ninho de outra ave, coloca lá o seu ovo, deitando fora um dos outros ovos. O ovo é semelhante em cor e tamanho, pelo que a ave não nota o engodo. A cria do cuco nasce primeiro e a ave-mãe cuida dela como se fosse sua. O cuco bebé, por outro lado, lança fora os outros ovos, para ser o único a receber a comida. A ave-proprietária do ninho não se dá conta do engano, mesmo quando o cuco fica maior do que ela.
Qual é a nossa opção: viver como o cuco ou procurar viver a própria vida?
Como cristãos, a opção é viver ao jeito de Jesus, acolhendo a vida como dom, gastando-a com os outros, construindo fraternidade.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/13, n.º 4644, 9 de fevereiro de 2022
Editorial Voz de Lamego: Escutar com o ouvido do coração

Foi apresentada a Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, que se comemora no Domingo anterior à Solenidade de Pentecostes, em Portugal, no Domingo da Ascensão de Jesus, no passado 24 de janeiro. Neste dia, a Igreja faz a memória de São Francisco de Sales, padroeiro dos jornalistas e daí que seja o dia marcado, em cada ano, para a apresentação da mensagem papal.
O Santo Padre escolheu como tema: “Escutar com o ouvido do coração”. Não se trata de um processo meramente biológico, mas é algo que envolve a pessoa toda. “A escuta não significa apenas uma perceção acústica, mas está essencialmente ligada à relação dialogal entre Deus e a humanidade. O «shema’ Israel – escuta, Israel» (Dt 6, 4) – as palavras iniciais do primeiro mandamento do Decálogo – é continuamente lembrado na Bíblia, a ponto de São Paulo afirmar que «a fé vem da escuta» (Rm 10, 17). De facto, a iniciativa é de Deus, que nos fala, e a ela correspondemos escutando-O; e mesmo este escutar fundamentalmente provém da sua graça, como acontece com o recém-nascido que responde ao olhar e à voz da mãe e do pai”.
Temos dificuldade em escutar, tal é também a multiplicação de ruído, mas a escuta continua a ser essencial para acolhermos o outro, para nos entendermos, para estreitarmos os laços que nos unem. Uma sociedade saudável terá de ser uma sociedade em que as pessoas se escutam mutuamente, debatendo, dialogando, fazendo propostas, acolhendo o contributo dos outros, escutando não apenas aqueles que nos são favoráveis, mas também os demais. “Estamos a perder a capacidade de ouvir a pessoa que temos à nossa frente, tanto na teia normal das relações quotidianas como nos debates sobre os assuntos mais importantes da convivência civil”.
Podemos usar a audição para espiar e, posteriormente, expor. “De facto, uma tentação sempre presente, mas que neste tempo da social web parece mais assanhada, é a de procurar saber e espiar, instrumentalizando os outros para os nossos interesses”.
Podemos fazer ouvidos de mercador, ouvindo o clamor dos pobres, mas fazendo de conta de que não é connosco. A comunicação, como a informação, precisa da escuta atenta e dialogante, procurando estabelecer pontes. Durante a pandemia, tem prevalecido muita desinformação, caindo-se numa infodemia, demasiada informação que veicula notícias falsas, através da suspeição, criando dúvidas e esquecendo as evidências.
O Santo Padre convida novamente a escutar as pessoas, vítimas da pandemia, da pobreza, da exclusão, migrantes e refugiados, conhecer e contar as suas as histórias. Assim haveria uma consciência mais apurada da realidade e seria mais fácil responder-lhes, indo ao encontro das suas necessidades.
“A escuta corresponde ao estilo humilde de Deus. Deus que sempre Se revela comunicando-Se livremente, e, por outro, o homem, a quem é pedido para sintonizar-se, colocar-se à escuta. No fundo, a escuta é uma dimensão do amor. Só quem acolhe a Palavra com o coração «bom e virtuoso» e A guarda fielmente é que produz frutos de vida e salvação (cf. Lc 8, 15)”.
Não é possível comunicar sem escuta. Há diálogos que não o são de verdade, como quando esperamos que o outro fale para, depois, impormos o nosso ponto de vista, sem verdadeiramente escutar e sem possibilidade de fazer pontes, de nos aproximarmos reciprocamente.
O que vale para a sociedade, vale por maioria de razão para a Igreja. Estamos em processo sinodal, em que a escuta será essencial. Com efeito, “a comunhão não é o resultado de estratégias e programas, mas edifica-se na escuta mútua entre irmãos e irmãs”. O desafio é a escutarmos com o ouvido de Deus. O Papa cita o teólogo Dietrich Bonhöffer, para relevar que “quem não sabe escutar o irmão, bem depressa deixará de ser capaz de escutar o próprio Deus”.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/12, n.º 4643, 2 de fevereiro de 2022