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Editorial da Voz de Lamego: Todos irmãos

“Fratelli tutti” é a terceira Carta Encíclica do Papa Francisco, assinada em Assis, no passado sábado, e disponibilizada neste domingo, 4 de outubro, dia em que a Igreja recorda a figura de São Francisco de Assis, de quem o Papa escolheu o nome para o seu pontificado e em quem se inspirou para escrever esta encíclica, de cariz social, tal como também se tinha inspirado para escrever a “Laudato Si’”, mais ambientada na ecologia.
Os pobres, os excluídos, as periferias geográficas mas sobretudo existenciais têm merecido uma atenção insistente no seu pontificado. No Conclave, que o elegeu como Papa, o primeiro a abraçá-lo, o Cardeal brasileiro Cláudio Hummes, confidenciou-lhe: não te esqueças dos pobres. Foi este desafio que levou o Papa argentino a escolher o nome de Francisco, sublinhando o despojamento do santo de Assis.
Uma sociedade onde há excluídos, onde há pobres, é uma sociedade desequilibrada, em tensão, com muito combustível para a revolta, para o conflito, para a explosão. O mundo técnico e científico fez avançar a humanidade, facilitando a vida das pessoas e das nações, tornando-nos vizinhos. Porém, como relembrou Bento XVI, (com os meios de comunicação social atuais) somos vizinhos, mas não irmãos. É a fraternidade e amizade (social) que o Papa Francisco pretende com esta encíclica e com todas as intervenções.
O título, como explica o Papa, foi retirado das “Admoestações” de São Francisco de Assis, Palavras “para se dirigir a todos os irmãos e irmãs e lhes propor uma forma de vida com sabor ao Evangelho” (1).
Como pano de fundo imediato, a pandemia do novo coronavírus e consequente Covid-19, que irrompeu de forma inesperada, precisamente quando o Santo Padre estava a escrever esta carta. A emergência sanitária acentuou muitas debilidades da sociedade. “A Covid-19 deixou a descoberto as nossas falsas seguranças. Por cima das várias respostas que deram os diferentes países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto”.
No dia 27 de março, no momento extraordinário de oração, numa tarde carregada de nuvens, numa praça de São Pedro levemente iluminada e soberbamente deserta, ecoaram, pela rádio, pela televisão e pelas redes sociais, a oração e a palavras do Papa, realçando o facto de estarmos no mesmo barco, como fôramos surpreendidos pela tempestade, numa interpelação renovada a confiar no Senhor, mas igualmente a agir solidariamente, procurando que ninguém ficasse, que ninguém fique, para trás, esquecido, relegado pela origem ou pela condição social.
Passado este tempo, é fácil de ver que nem tudo correu bem, apesar de tantos que se esforçaram, que se esmeraram para cuidar das pessoas e salvar vidas. A fila dos excluídos continua a aumentar, os refugiados continuam a ver adiado o futuro, os países pobres continuam a depender das migalhas que caem da mesa dos ricos e sendo obrigados a seguir as políticas dos dadores.
Em contrapartida “é possível desejar um planeta que garanta terra, teto e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da paz, e não a estratégia insensata e míope de semear medo e desconfiança perante ameaças externas”.
A divulgação desta encíclica rapidamente se espalhou por todo o mundo. Cabe-nos agora fazer a sua receção, refletindo, como fazemos já na edição desta semana da Voz de Lamego, procurando torna-la consequente, fazendo com os desafios sejam concretizados e as “admoestações” não fiquem apenas no papel.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 90/43, n.º 4578, 6 de outubro de 2020
Editorial VL: O grito dos pobres e o barulho dos ricos
No penúltimo Domingo do Tempo Comum, desde o ano passado, comemora-se o Dia Mundial do Pobre. Algumas comunidades têm intentado iniciativas e dinâmicas para responder aos desafios do Papa.
Alguns interrogaram-se sobre a expressão, como se um Dia Mundial dos Pobres pudesse sancionar a condição de pobreza. No encontro com os meios de Comunicação Social, após ser eleito Papa, Francisco deixou claro que queria uma Igreja pobre, dos pobres e para os pobres. Mas também ficou claro que a sua voz seria firme contra todos aqueles que potenciam a pobreza de muitos, cristalizando situações de carência, de miséria e de dependência. Era a mesma voz que na Argentina se levantava contra o descarte humano, contra o trabalho e a exploração infantil. É uma das razões porque o Papa não distribui a comunhão. Em Buenos Aires havia empresários que apareciam nas fotos a comungar da mão do então Cardeal, e depois eram promotores do trabalho infantil, do trabalho escravo… As intervenções do Papa têm sido uma constante, sobre a economia que mata, a corrupção e a ganância de uns poucos que controlam e subjugam muitos e a crescente indiferença para situações de pobreza. A erradicação da pobreza, já o sublinhou algumas vezes, é falta de coragem e de vontade. Não faltam recursos, falta uma justa redistribuição.
Na segunda edição do Dia Mundial dos Pobres, o Papa colocou, novamente, os pobres no centro. Depois de chuveiros para os sem-abrigos, refeitórios, sanitários… durante uma semana, postos móveis de saúde, gratuitos para os mais desfavorecidos, e novamente o almoço com algumas centenas de pobres… Pode não resolver, mas trá-los para a luz… estão à vista, já não podemos dizer que não sabíamos!
Na celebração da Santa Missa, o Papa foi clarividente sobre o grito dos pobres: “é o grito estrangulado de bebés que não podem vir à luz, de crianças que padecem a fome, de adolescentes habituados ao fragor das bombas… É o grito de idosos descartados e deixados sozinhos. É o grito de quem se encontra a enfrentar as tempestades da vida sem uma presença amiga. É o grito daqueles que têm de fugir, deixando a casa e a terra sem a certeza dum refúgio. É o grito de populações inteiras, privadas inclusive dos enormes recursos naturais de que dispõem. É o grito dos inúmeros Lázaros que choram, enquanto poucos epulões se banqueteiam com aquilo que, por justiça, é para todos. A injustiça é a raiz perversa da pobreza. O grito dos pobres torna-se mais forte de dia para dia, mas de dia para dia é menos ouvido, porque abafado pelo barulho de poucos ricos, que são sempre menos e sempre mais ricos”.
Pe. Manuel Gonçalves
in Voz de Lamego, ano 88/49, n.º 4486, 20 de novembro de 2018
Santos, esses (quase) desconhecidos… São João Esmoler
Os pobres eram os seus senhores
Habitualmente, é pelo nome que somos conhecidos. Mas há vidas que se tornaram tão marcantes que até foram acopladas ao nome.
São João Esmoler (não vai ser difícil perceber porque é que aparece este sobrenome) nasceu em Chipre, foi funcionário do imperador, enviuvou e veio a ser patriarca de Alexandria por volta de 610. Espantou toda a gente com uma pergunta que fez à chegada: «Quantos são aqui os meus senhores?»
Como ninguém percebeu o alcance, ele descodificou: «Quero saber quantos pobres temos. Eles são os meus senhores, pois representam na terra Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Mt 25, 34-46). Dependerá deles que eu venha a entrar no Seu reino». Fizeram o apuramento. Havia 7500 pobres, que ficaram a receber, todos os dias, uma boa esmola.
É claro que as críticas não demoraram. Que havia alguns que não eram pobres, antes mandriões. Réplica cortante do Bispo: «Se não fôsseis não curiosos, não o saberíeis. Curai-vos da vossa intriga e curiosidade e deixai-me em paz. Prefiro ser enganado dez vezes a violar, uma vez que seja, a lei do amor».
Diz a história que o cofre nunca se esvaziou. A quem lhe agradecia ele respondia: «Agradece-me só quando eu derramar o meu sangue por ti; até lá, agradeçamos, os dois juntos, a Nosso Senhor Jesus Cristo».
Ninguém tinha coragem de lhe negar nada. Só que alguns costumavam sair, furtivamente, da igreja antes do fim da Santa Missa. Sucede que o Bispo saía também e, de báculo na mão, juntava-se a eles cá fora intimando-os: «Meus filhos, um pastor deve estar com o seu rebanho; por isso, venho ter convosco. Mas não posso ficar aqui e não me posso cortar em dois; que iria ser das minhas ovelhas que estão lá dentro?» Desde então, toda a gente esperava pelo fim da Santa Missa para sair.
Dizem que, muito mais tarde, também Bossuet repetia: «Nossos senhores, os pobres». De facto e como assinalou Bento XVI, «o pobre é sempre uma surpreendente aparição de Deus».
Pe. João António Pinheiro Teixeira, in Voz de Lamego, ano 86/49, n.º 4385, 1 de novembro de 2016