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Editorial Voz de Lamego: A ganância do padeiro

A ganância prende-nos às coisas e afasta-nos das pessoas, da vida. A ganância e a avareza.
Por um lado, aspirar a algo mais e melhor é defensável, saudável e justo. E sobretudo quando conseguimos pensar em nós e nos outros. Já dizia o filósofo, que o homem ultrapassa infinitamente o homem (Blaise Pascal), na ambição de ser mais, de melhorar sempre, de alcançar novos objetivos, de transformar o mundo, fazendo que seja casa de todos e para todos.
Adam Smith apresenta o sistema económico a partir da ganância do padeiro, parafraseado por D. Tolentino Mendonça: “Devemos o nosso pão fresco não ao altruísmo do padeiro, mas à sua ganância. É graças à ambição do ganho, que os bens de que precisamos chegam às prateleiras dos supermercados… Esse dado é, de resto, comummente aceite. O facto que hoje se coloca, sempre com maior urgência, é, porém, de outra natureza. Claro que não perde validade a justa expectativa de que a atividade laboral produza o seu lucro, mas o que se coloca às nossas sociedades é a questão da sua capacidade para resolver, ainda que de modo não completamente perfeito, os desequilíbrios que elas próprias geram e que ameaçam a sua preservação… A difícil situação atual mostra-nos, sem margem para hesitações, como se tornou urgente e vital introduzir alternativas de fundo num campo que é económico e financeiros, mas também é humano e civilizacional…”
Por outro lado, como sói dizer-se, tudo o que é em excesso acaba por descambar, tornando-se destrutivo. É ditado bem antigo: a virtude está no meio; nem oito nem oitenta; nem tanto à terra nem tanto ao mar; com conta, peso e medida. O justo equilíbrio, qual fiel da balança, não será fácil de alcançar. Há uma fórmula: o amor! A compaixão. O colocar o outro antes! Se todos procedermos do mesmo modo, o modo de Jesus, então todos seremos beneficiários e beneméritos uns dos outros.
A conversão nunca é de fora para dentro. É sempre interior, espiritual, pessoal. É conhecida a história de um pai com muito trabalho para fazer e que tinha de cuidar do filho, sempre muito ativo. Entrega-lhe um conjunto de peças para completar o mundo (puzzle). Julgou o pai que, durante um bom pedaço, o filho estaria entretido. Instantes depois, o filho aparece com o mapa do mundo completo. O pai, boquiaberto com tanta rapidez, pergunta-lhe como é que fez para ser tão rápido. Bom, respondeu o filho, por detrás estava a figura de um homem, construí o homem e o mundo ficou construído também. A lição é que não se pode mudar o mundo sem mudar pessoas. Do mesmo modo, a conversão, a mudança de vida, passa pela vontade, pela decisão firme, interior, em caminhar em determinada direção. Claro que o ambiente também pode ser facilitador. Na lógica de Ortega Y Gasset, o homem é ele e as suas circunstâncias.
Jesus, no seu ministério missionário, desafia cada um de nós a gastarmo-nos a favor dos outros, a darmos-lhe de comer, a curá-los, a renunciar a si, para que os outros sejam salvos, a servir, tal como Ele que veio para servir e dar a vida por todos. A interpelação de Jesus é, antes de mais, melhor, sempre, para mim. Para ti. Para nós. Nunca para o outro! Não se pode impor a salvação, não se pode impingir o projeto do reino de Deus preconizado por Jesus.
Alguém do meio da multidão, ouvimos hoje no Evangelho, diz a Jesus: «Mestre, diz a meu irmão que reparta a herança comigo». A resposta de Jesus não se faz esperar e é elucidativa: «Amigo, quem Me fez juiz ou árbitro das vossas partilhas?». A propósito, diz o santo Padre: “Acumular bens materiais não é suficiente para viver bem, porque, diz Jesus, a vida não depende do que se possui (Lc 12, 15). Em vez disso, depende de bons relacionamentos: com Deus, com os outros, e também com aqueles que têm menos”.
Deus não se intromete na nossa responsabilidade humana. Não somos marionetas. Sabemos o caminho? A primeira opção, é avançar, seguir! Sabendo que o caminho nos conduz a Deus e nos salva, então, sim, poderemos chamar os outros, desafiá-los, deixar que a nossa vida transpareça a salvação que nos é dada por Jesus Cristo. Não pedimos a Deus para que faça o que nos compete fazer.
A avareza faz-nos perder o melhor da vida, a alegria da partilha, do trabalho honesto, da comunhão com os outros nos dias de chuva e nos dias de sol. Claro que Deus dá-nos o pão nosso de cada dia, contando com o nosso trabalho e na certeza que o pão que pedimos e trabalhamos também nos compromete com a partilha e com a comunhão com quem não pode trabalhar.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/37, n.º 4668, 3 de agosto de 2022
DESEJO e SEDE | EDITORIAL VOZ DE LAMEGO | 1 de maio de 2018
DESEJO e SEDE
Por estes dias não faltarão textos e testemunhos para assinalar o sucedido em Paris há 50 anos, Maio de 68, bem como a alusão a algumas das consequências do movimento então iniciado.
A propósito, sem entrar em grandes explicações ou detalhes, sublinha-se apenas a vontade de abolir interditos (“é proibido proibir”), abrindo à possibilidade de experimentar tudo sem a obrigatoriedade de não se decidir por nada. Uma postura que conduziu a uma certa volatilidade dos compromissos, ao consumismo, a uma atrofia dos fins e a uma cultura do “assédio constante”. Um facto que continua a ver-se: vivemos numa “sociedade excitada” que proporciona uma contínua possibilidade de experimentar, ansiosa pela novidade.
O desejo de experimentar é natural e inato, mas a ausência de regras e do sentido do interdito pode levar a uma “cultura frígida, estéril e esterilizadora”.
Daí que alguns estudiosos, como Maria Clara Bingemer (Experiência de Deus na contemporaneidade, Paulinas, 2018), afirmem que estamos numa “cultura em recesso de desejo”, onde o “desinteresse progressivo” se torna visível. Porque, “pretender experimentar tudo pode ser, no final, não experimentar verdadeiramente nada”.
O Padre Tolentino Mendonça, no recente retiro pregado em Roma, também falou do assunto (Elogio da sede, Quetzal, 2018), sublinhando a importância da “sede de viver”, afirmando que “há na nossa cultura, e nas nossas Igrejas de igual modo, um défice de desejo”.
E identifica esta ausência de desejo com a “acédia”, que conduz à perda de vontade, a “olhar para a vida de um modo atonal, sem apetite”, uma espécie de indiferença, falta de presença e de interesse, perda de gosto de viver, desvitalização interior.
E conclui: “quando renunciamos à sede é que começamos a morrer”, com o risco de sermos como um “corpo abandonado sem sepultura”.
O desejo e a sede traduzem a abertura ao infinito.
Pe. Joaquim Dionísio, in Voz de Lamego, ano 88/22, n.º 44588, 1 de maio de 2018
SOCIEDADE DO CANSAÇO | Editorial Voz de Lamego | 14-10-2014
Com uma identidade própria, como Jornal da Diocese de Lamego, a Voz de Lamego informa-nos sobre o que acontece na Igreja, com particular incidência no espaço da Diocese, o que se passa de mais relevante no mundo, com especial atenção à região geográfica da Diocese. Além disso, apresenta um conjunto de reflexões que sublinham os grandes valores humanos e cristãos, no desafio sempre renovado de acolher e viver Jesus Cristo, testemunhando-O e transparecendo-O ao mundo inteiro, a começar pela própria casa, pela família, pela vizinhança.
Alguns dos destaques desta semana: Peregrinação do Movimento de Mensagem de Fátima (MMF) ao Santuário de Nossa Senhora da Lapa; o Dia Mundial das Missões, sublinhando a MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO (que pode ler AQUI) e na edição impressa, o acompanhando do Sínodo Extraordinário dedicado às famílias; algumas estatísticas dos alunos inscritos em EMRC, numa altura que as escolas estão com dificuldade em preencher vagas de professores.
Como referência ao ambiente de cada edição, o Editorial, proposto pelo Diretor, que esta semana faz uma incursão no mais recente livro de Tolentino Mendonça. Vale a pena aproveitar uns minutos para ler e meditar:
SOCIEDADE DO CANSAÇO
No seu mais recente livro, “A mística do instante”, o padre Tolentino Mendonça apresenta a mística como realidade que rapidamente associamos a espiritualidade e a interioridade. Contudo, segundo o autor, a espiritualidade não deve ser dissociada da dimensão corporal, porque “o corpo que somos é uma gramática de Deus”.
Neste particular, observando a sociedade que formamos, os seres corporais que circulam, interagem, conhecem e se dão a conhecer, o autor fala da “sociedade do cansaço”, caracterizando este como uma “enfermidade” e uma “patologia”. Vencidas que estão algumas batalhas contra bactérias e vírus, segundo ele, a patologia do nosso século é “neuronal”: as “depressões”, os “transtornos da personalidade”, as “anomalias da atenção”, o “síndrome do desgaste ocupacional”.
E conclui: “o excesso (de emoções, de informação, de expectativas, de solicitações…) está a atropelar a pessoa humana e a empurrá-la para um estado de fadiga, de onde é cada vez mais difícil retornar”.
O diagnóstico pode não estar completo, mas reconhecemos-lhe verdade e actualidade. Quantas vezes o desabafo mais comum soa a pregão contra o cansaço? Quantas mortes são procuradas em virtude do cansaço que se assume e da falta de perspectivas?
Um cansaço que, de resto, também se observa na Igreja. Não é por acaso que o Papa convida à alegria e que o apelo a uma “Igreja em saída” tem sido um refrão continuamente escutado. Porque, na verdade, um crente cansado (não apenas leigos, nem apenas os mais idosos) mais facilmente se lamenta do que sorri, olha mais para trás do que para diante e, sem esperança, enumera mais dificuldades do que possibilidades…
O cansaço estorva a missão do baptizado, porque deixa de ter forças para anunciar, por palavras e actos, as “razões da sua fé”.
Pe. Joaquim Dionísio, VOZ DE LAMEGO, 14 de outubro de 2014, n.º 4284, ano 84/46