Arquivo
Editorial Voz de Lamego: Somos o que desejamos ser

“Deus quer, o homem sonha e a obra nasce” (Fernando Pessoa). Se nada desejamos nada alcançaremos. Dir-nos-á Blaise Pascal: “o homem ultrapassa infinitamente o homem”. Está inscrito no nosso íntimo este desejo de sermos mais, vivermos melhor, deixarmos marcas da nossa passagem pelo mundo. O homem não cabe em si mesmo, tende a buscar-se até ao infinito, constitutivamente limitado e finito, procura sobreviver para lá do tempo e da materialidade, além das fronteiras do corpo e do mundo. O desejo espicaça o nosso comprometimento na busca, na persistência e no envolvimento em diversas iniciativas, desafios e campanhas.
O Papa Francisco, na homilia da Epifania do Senhor, acentuou esta necessidade de desejo, de busca, de caminho, de resiliência diante dos obstáculos. É o desejo que alimenta a busca e o encontro com Jesus. O Santo Padre começou por citar o seu antecessor: os Magos eram «pessoas de coração inquieto (…); homens à espera, que não se contentavam com seus rendimentos assegurados e com uma posição social (…); eram indagadores de Deus» (Bento XVI, 06/01/2013).
Mas de onde nasce esta inquietação que levou os Magos a peregrinar? Nasce do desejo, responde o Papa Francisco. “Desejar significa manter vivo o fogo que arde dentro de nós e nos impele a buscar mais além do imediato, mais além das coisas visíveis. É acolher a vida como um mistério que nos ultrapassa, como uma friesta sempre aberta que nos convida a olhar mais além, porque a vida não é «toda aqui», é também «noutro lugar». É como uma tela em branco que precisa de ser colorida. Um grande pintor, Van Gogh, escreveu que a necessidade de Deus o impelia a sair de noite para pintar as estrelas. Isto deve-se ao facto de Deus nos ter feito assim: empapados de desejo; orientados, como os Magos, para as estrelas. Somos aquilo que desejamos. Porque são os desejos que ampliam o nosso olhar e impelem a vida mais além: além das barreiras do hábito, além duma vida limitada ao consumo, além duma fé repetitiva e cansada, além do medo de arriscar, de nos empenharmos pelos outros e pelo bem. «A nossa vida – dizia Santo Agostinho – é uma ginástica do desejo» (Tratados sobre a primeira Carta de João, IV, 6)”.
Iniciámos um novo ano civil! Quando falamos em novo, falámos em propósitos, sonhos, desejos! Mas é possível que a meio do caminho vacilemos! É possível que tenhamos começado 2022 já cansados, nomeadamente em relação a rotinas quotidianas ou a esta pandemia que não mostra sinais de ceder. Ao longo da nossa vida podemos passar por momentos de embotamento, de desencanto e insensibilidade em relação às pessoas ou aos acontecimentos, negativos ou positivos. Deixamos de acreditar, colocamos em causa a bondade das pessoas, parece que o que dizemos e fazemos não faz diferença. Sinal e expressão que o desejo (por Deus) se esbateu, a fé adormeceu! É a vida! Faltou-nos o combustível? A oração? A escuta e meditação da Palavra de Deus? Algum acontecimento que nos deixou de rastos? No trabalho? Na família? Na sociedade?
Deixemo-nos guiar novamente pela reflexão do Santo Padre: “Debruçamo-nos demasiado sobre os mapas da terra, e esquecemo-nos de erguer o olhar para o céu… O desejo de Deus cresce se permanecermos diante de Deus. Porque só Jesus cura os desejos. De quê? Da ditadura das necessidades. Com efeito, o coração adoece quando os desejos coincidem apenas com as necessidades; ao passo que Deus eleva os desejos; purifica-os, cura-os, sanando-os do egoísmo e abrindo-nos ao amor por Ele e pelos irmãos. Por isso, não esqueçamos a Adoração: detenhamo-nos diante da Eucaristia, deixemo-nos transformar por Jesus. Como os Magos, levantemos a cabeça, ouçamos o desejo do coração, sigamos a estrela que Deus faz brilhar sobre nós… Sonhemos, procuremos, adoremos”.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/09, n.º 4640, 12 de janeiro de 2022
Editorial Voz de Lamego: Levantai-vos! Vamos… seguir a Estrela

Na Epifania do Senhor, a liturgia da Palavra apresenta-nos um grupo de Magos que vem do Oriente (cf. Mt 2, 1-12). Vêm de longe, dos confins da terra, guiados por uma estrela. «Onde está – perguntaram eles – o rei dos judeus que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-l’O».
Os Magos são buscadores de Deus. Há quem se afaste de Deus através dos estudos. Há quem, pela ciência, se encontra com o Criador, o Senhor que faz belas todas as coisas. Os magos deixam-se surpreender por aquela estrela. Sabem que é diferente. O Rui Veloso, numa magnífica canção, diz que já não há estrelas! Mas a verdade é que continua a haver estrelas. Algumas guiam-nos para Belém, outras guiam-nos para ninguém.
Há quem tenha a graça de encontrar Deus, através da família e/ou do ambiente em que nasceu e cresceu, por meio de algum acontecimento impactante, na oração intensa, na sinceridade da procura. Há quem já tenha ouvido falar d’Ele. Aquela estrela despertou os Magos e fez com que eles se pusessem a caminho. Esta é a atitude que deveremos imitar: estar atentos aos sinais que vêm de Deus; discernir sobre as estrelas para seguirmos as que nos levam a Jesus; coloquemo-nos a caminho. Talvez muitos tenham visto a estrela, mas só os magos se puseram a caminho. Herodes, por exemplo, deixou-se ficar na segurança e no conforto do Palácio.
Por outro lado, sejamos também estrelas para os outros, pelas palavras e pela vida, facilitemos o seu caminho para Jesus, deixemos que a luz do alto resplandeça através de nós.
Um homem tinha um cavalo que ficou cego e, por conseguinte, se tornou-se inútil. Que fez este homem? Comprou outro cavalo e colocou-lhe uns guizos que passaram a servir de orientação para o cavalo cego. Assim, quando eram horas de ir para a padraria, o cavalo cego seguia o cavalo com os sinos. Quando era hora de recolher, a mesma coisa. O dono não desistiu do cavalo só porque agora já não tinha a mesma “utilidade”. Assim procede Deus connosco, coloca “estrelas” que nos guiam ou “cavalos com guizos”. Outras vezes teremos que ser nós as “estrelas” ou os cavalos com guizos que ajudam outros a orientar-se e seguir por caminhos que levem a Jesus.
Vivemos num mundo, hoje mais do que no passado, em que os desafios são vários e as propostas são milhentas, algumas revestidas a ouro, mas que escondem egoísmo, maldade e jogos de poder. Há que saber discernir e para tal o primeiro passo é a oração, a invocação do Espírito Santo.
A alegria dos Magos redobra quando veem a estrela a fixar-se onde se encontra o Menino. Entram em casa e veem o Menino, com Maria, Sua Mãe. Prostram-se diante d’Ele e adoram-n’O, abrem os seus tesouros e dão-lhe presentes: ouro, incenso e mirra. Deus não nos pede o impossível, pede-nos o melhor de nós. Os Magos dão o melhor que têm, os seus tesouros. Não guardam para si o que pertence ao Senhor. Os presentes têm também um simbolismo que fazem reconhecer a realeza, a divindade e a humanidade (mortalidade) d’Aquele Menino.
O encontro com Jesus faz-nos regressar à vida com outra alma. Como os Pastores, também os Magos voltam para os seus afazeres, mas regressam por outro caminho. Nada será como antes. Isto diz-nos respeito. A alegria já é imensa quando as estrelas nos falam, apontam, nos mostram Jesus! A alegria há de preencher-nos por inteiro no encontro com Jesus. Este encontro há gerar vida nova na vida de todos os dias, na opção firme pela verdade, pelo bem, pelo serviço, pelo amor ao nosso semelhante.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/08, n.º 4639, 5 de janeiro de 2022
Editorial: Levantai-vos! Vamos… a Belém!
Depois da Anunciação, Maria levantou-se e partiu apressadamente para a montanha em direção a uma cidade de Judá, ao encontro de Isabel, para a ajudar, carregando no seu ventre o Salvador do Mundo. É a presença de Jesus, Filho de Deus, que torna leve e célere a pressa de Maria. Jesus não é um peso que carregamos, Ele carrega-nos e alivia a nossa cruz com o Seu amor, ainda que tenhamos de fazer a nossa parte!
Mais tarde, José levanta-se e, sem delongas, pega em Maria e no Menino e vai para o Egito. A agilidade de José vem-lhe do amor e da fé. Até de noite o Senhor o inspira e lhe mostra a necessidade de fazer escolhas que permitam cuidar do Menino e de Sua Mãe.
Anos mais tarde, Maria e José voltam atrás porque sentem o peso da ausência de Jesus. Quando prosseguimos sem Jesus a nossa vida torna-se pesada ou mesmo insuportável. O mundo precisa de notícias boas e da Boa Notícia da salvação. Maria contagia Isabel e João Batista porque n’Ela está o Senhor da Alegria, Jesus.
O lema da nossa diocese – Levantai-vos! Vamos! – obriga-nos a seguir Jesus, no momento da tormenta, mas sabendo que a Cruz é apenas mais uma etapa no caminho. A Cruz é essencial para os cristãos, enquanto expressão do amor levado até às últimas consequências, mas ainda assim não é a cereja no topo do bolo, é um prelúdio do que vem: a vida, a ressurreição, a eternidade no coração de Deus. Deus faz-Se um de nós e faz-nos participantes da Sua vida divina. Encarna para nos ressuscitar!
Sozinhos podemos perder-nos no caminho! Então prossigamos em comunidade. Não basta estar juntos, é necessário a comunhão solidária, o diálogo, a oração, colocando Deus ao centro. É Ele que nos mantém ligados, a caminhar juntos. A Igreja, que vive em processo sinodal, é fundada à imagem da Santíssima Trindade. Deus é Pai e é Filho e é Espírito Santo. Harmonia perfeita, sem confusão. A sinodalidade compromete-nos trinitariamente a promover as diferenças, valorizando o que nos enriquece mutuamente e limando as arestas que nos ferem reciprocamente.
Na região de Belém, uns pastores, que pernoitavam e guardavam os seus rebanhos, são surpreendidos pelo Anjo do Senhor, que lhes diz: «Não tenhais medo! Eis que vos anuncio uma boa nova, que será uma grande alegria para todo o povo: nasceu-vos hoje, na cidade de David, um salvador que é Cristo Senhor. E isto será para vós o sinal: encontrareis uma criança envolta em panos e deitada numa manjedoura».
Os pastores são pessoas simples, estão habituados à dureza dos dias e das noites. Vivem com pouco. Pobres entre os pobres. Vivem atentos a tudo o que os rodeia, a ameaças que venham do campo ou dos ladrões. Não podem perder nenhuma ovelha. Se tal acontecesse teriam que prestar contas aos donos dos rebanhos e veriam reduzidos os meios de subsistência. Confiam uns nos outros, auxiliam-se nas adversidades, protegendo-se e aos rebanhos. Serão uma bela imagem do Pastor que estão prestes a conhecer!
Logo que os Anjos se afastaram para o céu, os pastores disseram: «Vamos até Belém, vejamos o que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer». O evangelista sublinha que eles foram com pressa. Confiaram nas palavras do anjo e no cântico celestial. Não há tempo a perder. É urgente partir. Encontram Maria, José e a criança deitada numa manjedoura. Logo dão a conhecer o que o anjo lhes tinha dito a respeito daquele menino. E quando regressam fazem o mesmo, glorificam e louvam a Deus (cf. Lc 2, 8-21).
Neste tempo de Natal, deixemos que ressoe em nós a ternura do Menino-Deus. Partamos. Vamos. Até Belém. Até Jesus. Não O percamos de vista! Anunciemo-l’O com alegria, descubramo-lo nas manjedouras deste tempo, nos recantos do mundo, nas nossas famílias e na vizinhança. Vale a pena partir se O levarmos connosco!
Santo e abençoado Natal.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 92/07, n.º 4638, 22 de dezembro de 2021
Editorial da Voz de Lamego: Um Menino nos foi dado

O nascimento de uma criança é, ou deveria ser, uma bênção. Um bebé chega e altera tudo! Desinstala, incomoda, preenche tempos e espaços, exige atenção e cuidado. Vivemos num mundo de contradições várias, precisamos de ser férteis, nesta Europa envelhecida, e, no entanto, as taxas de natalidade continuam a ser muito baixas e todos os dias vemos agressões para com as crianças, abusos, tráfico, trabalho infantil, violência. Sem o nascimento de novos seres humanos não é possível a sobrevivência da humanidade e sabe-se que qualquer comunidade que não tenha crianças ou que as tenha num número reduzido tende a ser mais frágil, mais dependente do exterior, economicamente insustentável, pois são as crianças e os jovens que geram mais movimento e fazem circular a economia.
Jesus vem para desinstalar, para ser sinal de contradição, como sublinha o velho Simeão diante de Maria e de José, é Ele a Luz das nações (cf. Lc 2, 25-35). Nasce pobremente, numa manjedoura, sem grandes confortos, num ambiente pouco limpo, junto de animais. Ele que era rico, fez-Se pobre para nos enriquecer com a Sua pobreza, isto é, com a Sua vida, com o Seu amor (2 Cor 8, 9).
Vivemos num tempo diferente, com outras comodidades, mas temos consciência que o conforto sem o calor humano vale de pouco. Precisamos de comodidade, mas precisamos muito mais da amizade e de com quem partilharmos a vida. A vida, diz-nos Augusto Cury, “contém capítulos imprevisíveis e inevitáveis. Todo ser humano passa por turbulências na sua vida. A alguns falta o pão na mesa; a outros, a alegria na alma. Uns lutam para sobreviver. Outros são ricos e abastados, mas mendigam o pão da tranquilidade e da felicidade. Por isso há miseráveis que moram em palácios e ricos que moram em casebres”.
Aquele Menino obriga-nos a ajoelhar, a debruçar-nos sobre ele, a colocar-nos à mesma altura, para estarmos olhos nos olhos. Um Menino, numa manjedoura! Um Menino que é luz, bênção e alegria para aqueles pais, para mim e para ti, para a humanidade inteira. Quando queremos ver bem um bebé aproximamo-nos da mãe ou do berço, o que nos obriga a inclinar-nos ou a baixar-nos. O mesmo sucede se queremos conversar com uma criança de igual para igual, ajustamos a nossa altura, ajoelhamo-nos, adaptamos a voz, tornando-a mais suave (e muitas vezes acriançada, como se dessa forma a criança nos percebesse melhor!). Se olhamos a criança a partir de nós, ela ver-nos-á como gigantes; se a olhamos a partir dela mesma, da sua estatura, ela perceberá que queremos comunicar e lhe queremos bem.
Assim faz Deus connosco, em Jesus Cristo, abaixa-Se, apequena-Se, encarna, faz-Se um de nós, coloca-Se ao mesmo nível, da nossa carne, mortal e finito como nós, frágil e sujeito às mesmas vicissitudes, a ser amado, esquecido ou maltratado. Tudo por amor. Este Menino veio para ser luz e bênção e para ser sinal de contradição. Com a Sua vida próxima e terna ensina-nos que o caminho da salvação se veste de amor e de perdão, de serviço e de cuidado. Para sermos como Ele, e somo-lo enquanto discípulos missionários, não precisamos de nos agigantarmos diante dos outros, precisamos de nos despojar de adornos, tornando-nos crianças na docilidade e transparência, na sinceridade de coração.
Santo Natal a todos os que fazem a Voz de Lamego (edição, publicação, colaboração de textos, notícias e fotos, na publicidade e anúncios, assinantes, leitores e amigos) e a todas as famílias a quem esta boa nova chegar!
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 91/07, n.º 4589, 22 de dezembro de 2020
Editorial da Voz de Lamego: Maria adentra-nos no Advento
Quando esta edição ficar disponível para leitura, já teremos vivido um dos momentos mais emblemáticos da liturgia católica, a Solenidade da Imaculada Conceição, Rainha e Padroeira de Portugal. Celebramo-la em pleno Advento. Preparamo-nos, liturgicamente, para a festa mais popular em todo o mundo, e não apenas em ambientes cristãos, o Natal de Jesus. A figura da Virgem Maria é incontornável, como o é também São José, ainda que ao longo dos anos tenha sido relegado para um papel muitíssimo secundário.
Desde os primeiros instantes, a Virgem Maria, Mãe de Jesus, tornou-se uma figura importantíssima para a Igreja e para os cristãos. Os discípulos perceberam, cedo, que Maria estivera sempre próxima de Jesus, desde a gestação até à morte, mas também uma presença autorizada nas primeiras “reuniões” dos discípulos após a morte de Jesus.
No alto da Cruz, Jesus revela que a Sua Mãe é também Mãe do discípulo amado, de todo o discípulo que O seguir por amor. Eis a tua Mãe, eis o teu filho. E dessa hora em diante, o discípulo recebeu-a em sua casa. Não é um discípulo, é cada discípulo amado, cada discípulo que se debruça sobre o peito de Jesus. Eu e tu. O discípulo amado não tem nome. Melhor, tem o nome de cada um de nós que segue Jesus, imitando-O, procurando, no dizer de São Paulo, que Ele viva em nós. A comunidade primitiva cumpre essa missão de acolher Maria como Mãe, em cada casa, em cada assembleia (= Igreja).
Ao longo da vida pública de Jesus, Maria é uma presença discreta, não se intromete, não ofusca a vida do Seu filho, confia, mas não se alheia d’Ele e por isso a vemos em situações mais críticas ou mais decisivas, nas Bodas de Canaã, intervindo, fazendo chegar a Jesus os pedidos das famílias dos noivos, apontando depois, para os servos, e para nós: fazei tudo o que Ele vos disser; quando se levantam vozes sobre a possível loucura de Jesus, Maria apresenta-se com outros familiares, para se assegurar que Ele está bem e, se necessário, acolhê-l’O de regresso a casa; junto à Cruz, ferida, mas firme, para dar forças ao Seu querido Filho. É fácil imaginar muitos outros momentos em que Nossa Senhora agiu com docilidade, sem chamar a atenção, em momentos de festa e de luto, no meio da multidão ou em casa, atarefada para acomodar Jesus e os Seus discípulos. E, como Mãe, sempre atenta e à espera de notícias sobre Jesus.
Maria adentra-nos no Advento, prepara-nos para o encontro com Jesus, inunda o nosso coração de festa, como de festa inundou o seio de Isabel e o coração de João Batista. Este, ainda dentro do ventre materno, salta de alegria pelo encontro, pela proximidade com o Salvador do mundo. Maria corre veloz pelas montanhas, como mensageira da paz, levando Jesus e as maravilhas que Deus opera nela e na humanidade. Quem está preenchido de festa, só pode extravasar de alegria. Cada um chora à sua maneira, mas a alegria tende a contagiar. O sofrimento irmana-nos, pelo silêncio e pelo abraço, pelas lágrimas ou falta delas. A alegria, genuína, é sonora, expõe-nos diante do outro.
Perante o Anjo, Maria ensina-nos a rezar um sim que é chamamento eterno: faça-se segundo a tua Palavra. É esta a senha, a chave que nos faz ver Jesus, conhecer o Deus-connosco, e a dispormos o nosso coração para ser a manjedoura onde Jesus vai nascer, onde repousa a Luz do seu amor.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 91/05, n.º 4587,8 de dezembro de 2020
Pe. Miguel Peixoto – Um permanente sinal admirável
Pode parecer um pouco extemporâneo falar sobre a carta apostólica Admirabile signum (As) do Papa Francisco depois do dia 25 de dezembro e, de facto, é se nos fixarmos uma dimensão meramente cronológica da nossa realidade. Contudo, enquanto crentes olhamos para a representação da natividade de Jesus e nela vemos a possibilidade de aprofundar o mistério da incarnação do Verbo de Deus, associando-nos ao gesto do Santo Padre, quando tornou pública mais uma das suas reflexões, desta vez sobre o significado e valor do Presépio.
O tempo e o espaço ganham, assim, uma outra dimensão quando os percebemos numa perspetiva kairológica, pois, o aqui e agora da nossa vida passam a ser um oportuno momento único, porque envolvidos pela presença de Deus. Se Deus sempre esteve presente na história da humanidade, a sua presença torna-se incarnada no nascimento de Jesus, mostrando-nos, com a nossa própria carne, que Deus não é uma ilusão ou uma fábula, mas ser real que, mesmo existindo desde sempre, quis incarnar na nossa realidade.
É, na verdade, no contexto da incarnação do Verbo que devemos ler a carta Admirabile signum, compreendendo que a sua representação, no presépio, se torna “como um Evangelho vivo que transvaza das páginas da Sagrada Escritura” (As 1).
O presépio torna-se sinal admirável, não só porque continua a suscitar a admiração de quem o contempla, mas porque nos guia na contemplação do mistério em que uma das pessoas do único Deus, o Filho, continua em tudo a ser Deus na fragilidade e simplicidade de uma criança, de um ser humano e comove-nos porque manifesta a ternura de Deus. Ler mais…
Editorial da Voz de Lamego: Deixai que o Menino chore
Como o Menino Jesus estava a chorar, São José terá dito a Nossa Senhora que era melhor dar-lhe uns açoites no rabo para que se calasse. A resposta de Maria é que deixem que o Menino chore porque Ele irá ter a sua conta de açoites, preanunciando as punhadas e as chicotadas que haveria levar em adulto, principalmente na aproximação ao Calvário. Une-se, nesta música antiga, originária dos monges de Coimbra, o Natal, a infância de Jesus, e a Paixão, os momentos de agressão para com Jesus. É este o contexto de uma música trabalhada e interpretada pelo “Bando Surunyo”, no concerto de Natal, na Igreja Matriz de Tabuaço.
Por ocasião do seu aniversário natalício, o Papa Francisco referiu-se a um presépio diferente: “Deixemos a mãe descansar”. Na representação, que rapidamente se tornou viral, Maria dorme enquanto José segura o Menino Jesus. Desta forma, o Santo Padre falava numa realidade concreta da família de Nazaré, mas também de muitas famílias, onde a ternura, a atenção e o cuidado predominam, onde o marido e a mulher se entreajudam nas lides domésticas. O nascimento de um filho, e os primeiros dias, e meses, altera por completo a vida em casa, multiplicando tarefas, acentuando o cansaço.
Deixar que o menino chore… nem sempre é fácil dizer não ao menino, contrariá-lo, deixar que chore, que faça birra, que caia e se suje, que brinque e tenha momentos em que não faz nada. Há, atualmente, uma necessidade imensa de preencher por completo a vida das crianças, não lhes dando tempo para pensar, para a espera paciente e também para momentos de rotina. Quer, dá-se-lhe; faz birra, cede-se-lhe; tem alguns momentos sem nada para fazer, passa-se-lhe o telemóvel para se ocupar. A agenda das crianças é tão preenchida que, por vezes, nem têm tempo para brincar: é preciso estudar, ir à natação, à música, ao Ballet, à dança, ao futebol. Uma correria constante. Há crianças começam a começar o stress!
No contexto que nos diz respeito mais diretamente, a catequese e a participação na Eucaristia, as crianças e adolescentes vão, e com gosto, se não houver um torneiro, uma competição, ou se as explicações forem noutro horário. Não estou a sugerir que a educação seja fácil. Os pais têm uma missão complexa e não é fácil encontrar equilíbrios. Não se pode deixar que as crianças decidam por elas o que fazer, mas também não se podem adultizar antes do tempo. A competividade pode ajudar no desenvolvimento, mas levada ao extremo gera conflito, comportamentos agressivos ou depressivos. Tem de se valorizar a tolerância, a diferença, a bondade. Tem de haver tempo para os jogos e as brincadeiras, para os intervalos, para a descontração.
Na passagem para um novo ano, vale a pena atender às palavras do Papa, para a ternura do Presépio e para a certeza que a vida (também nos propósitos) passa por pequenos gestos, concretos e reais. “Quem não é fiel no pouco, como se lhe pode confiar o muito?”
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 90/05, n.º 4540, 31 de dezembro de 2019
O Rei às nossas mesas
Chega a esta altura e, ao fechar os olhos, e ao imaginar a sua próxima Ceia de Natal, a tradição portuguesa surge de imediato no seu imaginário. Na noite de 24 de dezembro, noite de consoada, temos de ter, nas nossas travessas, o nosso bacalhau.
Para descobrir porque é que o bacalhau faz parte da nossa tradição temos de recuar até a Idade Média. Os cristãos faziam jejum, nas principais festas católicas, quer no Natal, quer na Páscoa, e o bacalhau era o “peixe” mais barato, logo mais acessível a todas as famílias.
Mesmo, quando o jejum por altura do Natal desaparece, a tradição de comer bacalhau persiste, até aos dias de hoje, e não acontece, apenas, no nosso país, pois os nossos emigrantes levaram com eles o rei salgado das nossas mesas.
A Voz de Lamego quis saber se a tradição ainda é o que era e fomos perguntar às pessoas. Hugo Borges, de 34 anos, diz que “o bacalhau está sempre na mesa, embora cozinhado de duas formas. O cozido para a maioria das pessoas da minha família e o bacalhau com broa, para os mais jovens, onde me incluo”. António, 50 anos, lembra-se desde criança de ter o bacalhau e o polvo na mesa de casa, “é uma tradição que se manteve, mesmo após o casamento e o nascimento do meu filho, até hoje”. Maria Sequeira, 22 anos, gosta de bacalhau e “se tivesse uma ceia de Natal sem ele, não seria a mesma coisa”, refere a jovem, de sorriso rasgado.
Portugal é o maior consumidor de bacalhau do mundo, sendo responsável por 25% do consumo global. Por isso, no dia 24 de dezembro, em vários países, em fusos horários diferentes, portugueses em Portugal e emigrados terão na mesa bacalhau, com certeza, espalhadas as raízes da nossa tradição.
Os maiores especialistas deixam a dica que se o bacalhau for demolhado mole, não demolha tão bem, tem de ter cor de palha.
Neste Natal, já sabemos, dentro de dias, teremos bacalhau cozido com batatas e couves, temperado com azeite da nossa região.
Demolhar…
Saiba que para demolhar de forma correta o bacalhau deve: Lavar o bacalhau em água fria corrente para retirar o excesso de sal à superfície; colocar num recipiente com água fria (a menos de 8ºC), com a pele virada para cima e totalmente coberto pela água; reservar o bacalhau, de preferência no frigorífico, para manter a água bem fria durante 24 ou 36 horas, de acordo com a grossura das postas; renove a água até 3 vezes por dia.
Valor nutritivo:
O bacalhau é um peixe com baixo teor de gordura (0,1% da DDR por 100g), rico em proteína de alto valor biológico, com quantidades apreciáveis em vitamina D, fósforo, potássio e magnésio. O bacalhau é particularmente rico em selénio, que integra diversas enzimas com capacidades de proteção das células do organismo contra os radicais livres de oxigénio responsáveis.
Apesar de demolhado, podemos verificar que o bacalhau ainda apresenta quantidades relativamente elevadas de sal (cerca de 3g por 100g), pelo que a adição de sal durante a confeção se torna desnecessária.
Andreia Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 90/04, n.º 4539, 17 de dezembro de 2019
Editorial Voz de Lamego: Um Menino que é bênção e luz
Quando uma criança nasce é uma bênção, enche a casa e a família, traz luz e brilho ao lar, enriquece a Igreja e a sociedade, torna viável o futuro da humanidade e possibilita que este mundo seja habitável e possa ser admirado pela beleza com que foi criado por Deus e transformado pela ação humana.
Uma criança que nasce deveria ser uma bênção luminosa.
Mas nem sempre é assim.
Há crianças cujo nascimento acentua desgraças, escuridão e treva, ruturas e pobrezas.
Há crianças que nunca chegarão a nascer, porque incomodariam os pais, seriam mais uma fonte de despesa, de preocupação, de desgaste.
Há um ror de situações problemáticas. Devemos colocá-las na nossa oração e confiá-las ao carinho misericordioso de Deus que é Pai e Mãe (João Paulo I).
Há muitas situações que merecem a nossa atenção, pois são provocação ao nosso compromisso social e político. E temos tantas formas de o fazer: os meios de comunicação social, as redes sociais, o voto, as campanhas a favor da vida, os debates e reflexões públicas, as campanhas de solidariedade (não apenas neste tempo, mas ao longo de todos os segundos do ano) que beneficiarão as pessoas mais frágeis, as instituições que apoiam mães solteiras ou vítimas de violência doméstica, que acolhem crianças desprotegidas ou famílias desgovernadas, dispondo de tempo para o voluntariado e contribuindo com generosidade e, sem recorrer nunca às coscuvilhice, procurar intervir em situações de violência, verbal, física e emocional, maus tratos ou descuido com crianças mas também com pessoas idosas, situações de injustiça e pobreza. Há santos à porta mas, sem o sabermos, por distração ou por pressas nos nossos nadas, também há pobres que precisam de ajuda ou de voz, ou de carinho ou de palavras amigas.
Estamos a ficar velhos. O lugar dos idosos há de ser valorizado, pela sabedoria a comunicar aos mais novos e à sociedade e porque, em todo o caso, estamos cá por eles, porque foi através deles que Deus nos deu a vida.
Estamos a ficar velhos. Sobretudo nas terras do interior e nos países ocidentais. Muitos dos problemas económico-financeiros têm a ver com a falta de crianças e jovens. A população está a morrer, está envelhecida e não se renova. As pessoas que estão em “idade ativa” são cada vez menos em relação às gerações anteriores, além da esperança média de vida ter aumentado muito.
Estamos a ficar velhos. Estamos a morrer. Mas Aquele Menino vem para nos dar vida e vida em abundância (Jo 10, 10). O Papa Francisco tem alertado para um género de egoísmo que nos conduz à morte, a preferência por investir num animal doméstico ao invés de um filho. Até agora, muitos casais tinham apenas um filho, agora há casais que não estão para isso!
Há muitos ponderáveis, mas talvez seja tempo de pensar mais nas pessoas e fazer com que as percentagens económicas sejam para combater desigualdades, criar oportunidades, erradicar a pobreza, proteger a vida, o ambiente.
Ainda não morrermos, ainda há esperança. Que o Deus Menino seja Luz, Bênção e Vida. Santo Natal.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 90/04, n.º 4539, 17 de dezembro de 2019
A História do Bolo Rei
Era uma vez,
num lugar e tempo, muito distantes, que se designava Roma antiga, que nasceu a tradição de eleger o rei da festa, durante as celebrações pagãs e religiosas. Havia grandes banquetes e ditava a sorte através das favas, quem seria o rei daquela festa.
A Igreja Católica achou esta ideia tão interessante e porque decorria, anualmente, em dezembro, decidiu relacioná-lo com o período de tempo entre o nascimento de Jesus e o dia dos Reis, a 6 de janeiro, que ficaria marcado por uma fava que apareceria no bolo Rei. Seria doce e “representaria os presentes oferecidos pelos Reis Magos ao Menino Jesus aquando do seu nascimento. A côdea simbolizava o ouro, os frutos secos e cristalizadas representavam a mirra, e o aroma do bolo assinalava o incenso. Ao avistarem a Estrela de Belém que anunciava o nascimento de Jesus, os três Reis Magos disputaram entre si, qual dos três teria a honra de ser o primeiro a entregar ao menino os presentes que levavam. Como não teriam conseguido chegar a um acordo e com vista a acabar com a discussão, um padeiro confecionou um bolo escondendo no interior da massa uma fava. De seguida cada um dos três Reis Magos pegaria numa fatia, o que tivesse a sorte de retirar a fatia contendo a fava seria o que ganharia o direito de entregar em primeiro lugar os presentes a Jesus. O dilema ficou solucionado, embora não se saiba se foi, Gaspar, Baltazar, ou Belchior o feliz contemplado, segundo nos conta uma lenda bem antiga”.
Contudo foi na corte do rei Luís XIV que surgiu o “bolo Rei”, que se fazia especificamente para a época de Natal. Estando, assim bem documentada a sua origem.
Voltas e mais voltas na história, este delicioso manjar chegou a Portugal e, a partir de 1870, os bolos traziam escondido uma fava simbólica e, ainda, um brinde.
A Confeitaria Nacional, na baixa pombalina, em Lisboa, foi a primeira casa em Portugal a realizar esta iguaria natalícia, o que fez com que melhorassem a qualidade das especialidades daquela casa e que granjeasse grande fama no nosso país. Um deles foi o célebre confeiteiro Gregório, que se baseou numa receita secreta de Bolo Rei que Baltazar Castanheiro Júnior trouxera de Toulouse, em 1869, contrariando outros relatos que indicam como ter vindo de Paris. Orgulha-se, esta confeitaria, de ter trazido a receita e a manter integralmente como receita francesa do sul de Loire. Balthazar Castanheiro Júnior, que aos seus méritos de confeiteiro juntava os de artista, trouxe uma cópia do quadro “Gateau des Rois”, de Jean-Baptiste Greuze, que durante anos teve exposto no seu estabelecimento como alusão a este famoso bolo. Como curiosidade é interessante ainda relembrar que, inicialmente, além da fava, posta em todos os Bolos Rei, alguns ocultavam prémios valiosos em ouro ou prata. Durante a quadra natalícia, a Confeitaria Nacional oferecia aos lisboetas uma exposição de tudo quanto de mais delicado e original a arte dos doces podia então produzir e claro o Bolo Rei. Assim o Bolo Rei atravessou com êxito os reinados de D. Luiz I, D. Carlos e D. Manuel II. De referir que a Confeitaria Nacional, devido à grande qualidade dos seus produtos, recebeu, em 1873, do rei D. Luiz I de Portugal, o alvará que a torna fornecedora oficial da Casa Real, condição essa que se manteve até à implantação da República, em 1910. Esteve ainda presente e ganhou prémios em exposições internacionais como a Exposição Universal de Viena de Áustria de 1873, a de Filadélfia de 1876; recebeu uma medalha na Exposição Universal de Paris de 1878 e na de Lisboa de 1884. A Confeitaria Nacional, um dos ex-libris da cidade de Lisboa, é uma casa que conta já com 187 anos de atividade comercial e industrial, sem nunca ter saído da mesma família, sempre no mesmo local e sempre com o mesmo critério, e a especialidade que a marcou, o famoso Bolo Rei. Aos poucos, outras confeitarias da cidade passaram também a fabricar o Bolo Rei, originando assim várias versões diferentes. Tradicionalmente este bolo de forma redonda, com um grande buraco no centro, é feito de uma massa fofa e branca, misturada com passas, frutos secos, e frutas cristalizadas.
Na cidade do Porto, o Bolo Rei foi introduzido em 1890, por iniciativa da Confeitaria Cascais, segundo uma receita que o proprietário, Francisco Júlio Cascais, trouxera de Paris, receita muito semelhante à da Confeitaria Nacional.
Salazar chegou, posteriormente, a proibir a colocação da fava e do brinde, no bolo rei, cujo nome também não agradava, mas anos mais tarde voltou a ser permitido.
O Bolo Rei está em cada mesa de Natal, em Portugal, e não se limita a ser um bolo vistoso e de um sabor único, é, também, um símbolo da nossa tradição.
Andreia Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 90/03, n.º 4538, 10 de dezembro de 2019