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TESTEMUNHAR A MISERICÓRDIA | EDITORIAL VOZ DE LAMEGO
No dia 20 de novembro de 2016, a Diocese de Lamego viveu um grande DIA, sublinhando várias celebrações no Pontifical da Sé presidido pelo Senhor Bispo, D. António Couto: Encerramento do Jubileu da Misericórdia, Ordenações Diaconais, Dia da Igreja Catedral e 5 anos da nomeação de D. António para a Diocese de Lamego.
A edição da Voz de Lamego desta semana faz eco deste acontecimento celebrativo, bem como a ponte para outras notícias da Igreja e do mundo. O desafio, que o nosso Diretor, Pe. Joaquim Dionísio, assume no Editorial, é viver e testemunhar a misericórdia além do Ano Santo Extraordinário, que decorreu entre 8 de dezembro de 2015 e 20de novembro de 2016…
TESTEMUNHAR A MISERICÓRDIA
A porta santa da basílica de S. Pedro, aberta nos anos jubilares, foi encerrada pelo Papa Francisco neste domingo, no mesmo dia em que também a porta jubilar do Ano da Misericórdia da nossa catedral se fechou, a exemplo do que fora feito no mundo católico na semana anterior.
O encerramento teve menor visibilidade e menos adereços, ao contrário da abertura há quase um ano. E com razão. Afinal, a misericórdia pode e deve continuar aberta. O que fechou foi um determinado acesso físico ao espaço de culto, mas a misericórdia deve continuar a ser experimentada e testemunhada. A cada um caberá manter aberta a porta da misericórdia nos espaços em que vive e junto daqueles com quem convive.
A misericórdia não se encerra.
Afinal, Deus promete “apenas” misericórdia aos misericordiosos. Não promete prémios nem carreiras, prestígio ou destaque, notícias ou tempo de antena… Apenas misericórdia! Mas não será a misericórdia o maior dom a que podemos aspirar para manter vida a esperança?
Ao longo do ano, com maior ou menor visibilidade, quantos gestos, palavras, olhares ou silêncios não protagonizaram misericórdia? E quanta mudança, alegria, proximidade e esperança inundaram o coração de tantos que “andavam perdidos e se encontraram”?
O jubileu que agora finda terá valido a pena se a porta da misericórdia continuar aberta. Um esforço a que todos os baptizados são chamados e que deve ter o exemplo dos que na Igreja mais responsabilidades assumem. Porque se a misericórdia se fecha é o Evangelho que se esconde.
Será importante “pegar” na porta jubilar da misericórdia e instalá-la no coração, de forma a estar disponível e aberta para a vida, para os outros, para o mundo.
in Voz de Lamego, ano 87/52, n.º 4388, 22 de novembro de 2016
Homilia de D. António Couto nas Ordenações Diaconais – 20/11/2016
A ORDEM NOVA DO AMOR
- Amados irmãos e irmãs, a nossa Diocese de Lamego vive, neste dia 20 de novembro de 2016, um excesso de celebrações, um excesso de celebração, um condensado de júbilo, que começo por recordar: a) celebramos a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo; b) celebramos o Aniversário da Dedicação da nossa Igreja Catedral; c) celebramos a Ordenação de três Diáconos, o Ângelo Fernando, o Diogo André e o Luís Rafael; d) celebramos o Encerramento do Ano Santo Extraordinário da Misericórdia.
- A Solenidade de Nosso Jesus Cristo, Rei do Universo, traz-nos o domínio novo do Filho do Homem que nos ama, o domínio do Amor, que é Primeiro e Último (cf. Apocalipse 1,8). É Primeiro e será ainda Último, fazendo de tudo o resto «segundo» e «penúltimo». Na verdade, entre o Primeiro e o Último, que é o domínio do modo do Amor, instala-se o segundo e o penúltimo, que é o domínio do modo velho e podre da violência das bestas ferozes que nos habitam. O Bem, que é o modo do Amor, é de sempre e é para sempre. É Primeiro e é Último. O Bem, como o modo do Amor, não começou, portanto. O que começou foi o mal, que se foi insinuando nas pregas do nosso coração empedernido. Mas o que começa, também acaba. Os impérios da nossa violência, malvadez e estupidez caem, imagine-se, vencidos por um Amor que é desde sempre e para sempre, e que vence, sem combater, a nossa tirania, mesquinhez, e prepotência!
JUBILEU DA MISERICÓRDIA: FIM DO ANO JUBILAR
O fim deste ano jubilar dedicado à Misericórdia estava, desde o início, calendarizado: dia 20 de novembro de 2016, Solenidade de Cristo Rei do Universo. Daí que a presente edição do nosso jornal seja a última antes do referido encerramento.
Poderíamos aproveitar o facto para tentar apresentar algum balanço ou para elencar as diversas iniciativas ocorridas. Isto porque, desde a abertura do Ano Jubilar, ocorrida na festa em honra da Imaculada Conceição do ano passado, muito se fez, escreveu, anunciou e pregou sobre a Misericórdia. E acreditamos que a misericórdia foi fundamento para muitas acções e gestos que aproximaram, auxiliaram e ajudaram a crescer e a viver. No entanto, sabemos que o verdadeiro balanço será feito por Deus. Mas não será de excluir um esforço individual que olhe o percurso feito e retire conclusões, ensinamentos e perspectivas.
Por outro lado, olhamos para o Jubileu como um fermento que continuará a motivar vivências naqueles que o acolheram e com os seus objectivos se comprometeram. Aliás, serão a continuidade e a perseverança a “medir” o acolhimento dispensado ao convite eclesial e à adopção de modos de vida marcados pela misericórdia.
Numa reunião, entre tantas em que se participa e falando-se do Jubileu anunciado pelo Papa Francisco, o Pe. Justino, pároco de Vila Nova de Paiva e de Fráguas, “desafiou” o jornal diocesano a publicar, semanalmente, algumas linhas sobre o tema. O repto foi aceite e a missão cumprida, apesar dos evidentes limites.
Assim, ao longo de vários meses, de muitas semanas, aqui se publicaram algumas linhas alusivas ao tema, divulgando a iniciativa e motivando para uma formação que não termina e para a vivência sempre primordial.
Nesta caminhada foram sendo feitas referências à Escritura que importa ler, escutar, meditar e levar para a vida, bem como a diversas publicações que saíram para divulgar vidas, ensinamentos e reflexões. Nas últimas semanas, aqui se deixaram também algumas notas sobre o ensinamento eclesial orientado para a questão social e política, a Doutrina Social da Igreja. Para referir que a Igreja há muito se preocupa com a questão social e que o seu ensinamento, aprofundado ao longo dos anos, visa a edificação de uma sociedade mais justa e mais fraterna.
O ano jubilar que agora termina pode e deve servir, também, para despertar a atenção de muitos para o bem que se faz, apesar de discreto ou arredado dos habituais alinhamentos informativos.
Termina o ano jubilar e, por isso, termina também esta coluna. Não sabemos se foi lida, útil ou divulgada, mas apareceu e manteve-se ao longo dos meses com a vontade de assinalar um percurso e com o objectivo de sublinhar o lema escolhido: “Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso”.
JD, in Voz de Lamego, ano 87/51, n.º 4387, 15 de novembro de 2016
JUBILEU DA MISERICÓRDIA: Caridade da razão
O título deste apontamento foi retirado do livro de L. Manicardi, “A caridade dá que fazer”, aqui citado na semana passada. E tal como o título, também as linhas que se seguem ali se inspiram.
A caridade, entendida como amor que aproxima do outro, não passou de moda e, tal como ontem, continua a ser necessária e bem-vinda nos tempos que correm. Não a caridade entendida como favorzinho, esmolinha ou sinónimo de pena, mas realidade humana que é capaz de ver o outro, reconhecer necessidades e agir oportunamente.
Mas a caridade é mais abrangente do que o gesto de dar alguma coisa a alguém; entende-la e vive-la assim seria pouco ambicioso e justo. Isto é, a caridade não pode ser entendida e vivida longe da justiça. Nesse sentido, a caridade deve, também, identificar e denunciar as causas e os causadores de tudo quanto atenta contra a dignidade humana.
Assim, falar de caridade da razão é esforçar-se por ter presente “o sentido do outro”, levando a caridade a ser mais que um mero sentimentalismo ou uma vaga piedade. Porque a caridade não pode andar longe da justiça: “se a caridade é amor pelo irmão, a justiça é amor pelos direitos dos irmãos”. Nesse sentido, a justiça é o rosto social da caridade.
Importa que a caridade tenha capacidade crítica, fruto da presença da razão e da inteligência. Isto significa que a caridade tem que fazer um juízo sobre as situações e sobre as realidades e exprimir uma palavra “forte, clara e profética” sobre os males que produzem a pobreza, a desigualdade, as injustiças… Estar atento e ser responsável perante quem é malvado, sabendo dar nome às obras dos malvados, oferecendo resistência.
A caridade da razão leva a que a justiça e a caridade se encontrem e conjuguem. Dar de comer a quem tem fome, vestir os nus, ensinar… serão sempre gestos concretos de caridade. Mas também será acto de caridade denunciar quem não paga salários justos, quem agride e persegue, quem não defende a vida, etc.
A caridade procura fazer face às necessidades do outro, mas deve também procurar libertar a sociedade das causas que provocam tais situações. Caso contrário traduzir-se-á num mero assistencialismo que não promove o outro e o mantém refém da sua situação.
O cristão também testemunha a sua fé pela atenção que presta aos outro, sobretudo ao mais pobre e marginalizado. Mas o seu gesto não o dispensa de falar, de escolher, de votar e de exigir a quem tem o dever de fazer mais e melhor. O silêncio e a abstenção poderão ser cómodos, mas não ajudam a razão e limitam a caridade. Porque a maldade precisa ser denunciada.
A tarefa é de todos e de cada um. Importa fazê-lo aqui e agora, porque este é o tempo que nos é dado, inspirados no Evangelho.
JD, in Voz de Lamego, ano 86/32, n.º 4368, 21 de junho de 2016
Os Santos e a Misericórdia: São Camilo de Lelis (1550-1614)
Que a misericórdia nos dê um olhar como o de Cristo que , por sua vez encarnou do mesmo modo como o Pai olha para “cada homem”. Isso depende do facto de Jesus ser principalmente contemplado, com uma intensidade que impele até à identificação com Ele.
De outra forma não se poderia realmente explicar a maneira como São Camilo de Lelis agiu: não só pretendia o melhor para os seus doentes, o que levou a querer dirigir o hospital inteiro, mas também exigia em primeiro lugar – de si e dos seus colaboradores – “a ternura”.
Cada doente era recebido pessoalmente por ele à porta do hospital com um abraço; eram-lhe lavados e beijados os pés; depois,era despido dos seus farrapos, revestido com roupa limpa e levado para uma cama bem feita. Camilo queria pessoas que o ajudassem «não por um salário, mas que voluntariamente e por amor de Deus servissem os doentes com aquele amor com que as mães tratam os próprios filhos enfermos». Os seus colaboradores observava-no para aprenderem: «Quando ele pegava num doente nos braços para lhe mudar os lençóis, fazia-o com tanta afeição e diligência que parecia estar a tocar na própria pessoa de Jesus Cristo.» Por vezes ralhava com os colaboradores, clamando: «Mais coração, quero ver mais afeto materno!» Camilo não temia sujar as mãos nuas com os rostos dos doentes devorados pelo cancro, e depois beijava-os, explicando aos presentes que «os pobres enfermos são pupila e o coração de Deus e por isso tudo o que se fazia a esses pobrezinhos, era a Deus que se fazia».
Os doentes eram para ele como um prolongamento da humanidade sofredora de Cristo. Isso via-se também em certas atitudes que às vezes assumia, quase sem se aperceber. Um biógrafo seu refere: «Numa noite, viram-no de joelhos junto de um pobre enfermo que tinha um tão pestilento e fétido cancro na boca, que não era possível tolerar tanto fedor. E contudo, Camilo falava-lhe absolutamente perto dele, “respiração com respiração”, e dizia-lhe palavras com tanta afeição, que parecia estar enlouquecido de amor por ele, chamando-o especialmente: “Meu senhor, alma minha, que posso eu fazer em vosso serviço?” Procedia assim, por pensar que ele fosse o seu amado Senhor Jesus Cristo…»
Houve outra testemunha que chegou a afirmar: «Muita vez o vi a chorar devido à comoção veemente de que no pobrezinho estivesse Cristo, de tal forma que adorava aquele enfermo como se fosse a pessoa do senhor.»
As expressões podem parecer exageradas, mas não era certamente exagerada a impressão que Camilo deixava em quem o observava: entre a misericórdia concreta para com o próximo necessitado e a ternura para com a pessoa de Cristo, ele não deixava que houvesse nenhuma diferença, tanto que chegava ao ponto de contar a chorar a alguns doentes os pecados da sua vida passada, convencido de que falava com o seu Jesus. Aos seus olhos e no seu coração, Jesus nunca se transformava num ideal, num valor, numa causa, ou num motivo para agir; mas era e permanecia uma Presença adorável e adorada.
Ir. Francisca, in Voz de Lamego, ano 86/26, n.º 4365, 31 de maio de 2016
JUBILEU DA MISERICÓRDIA | VESTIR OS NUS
A roupa que usamos esconde a nudez com que nascemos e contribui para a afirmação da nossa identidade e para a preservação da nossa individualidade. Instintivamente, por causa do frio, o homem sempre procurou cobrir-se, mas também como necessidade de salvaguarda e afirmar a sua intimidade e identidade. Por outro lado, e para lá da e do conforto oferecido, a roupa é um adereço para o corpo, tal como o são tantos outros adornos que variam segundo as culturas e os gostos de cada um.
A roupa é fonte de negócios para muitos e contribui para celebrar festas e acontecimentos. Mas todos poderão reconhecer alguma futilidade e superficialidade em certas áreas neste sector. O essencial da vida está para além destes adereços e o homem será sempre mais do que aquilo que veste, embora, às vezes, sejam os “trapinhos” a determinar a notícia e a imagem!
A este propósito, o nobel da literatura, Mário Vargas Losa escreveu: “Na civilização dos nossos dias é normal e quase obrigatório que a cozinha e a moda ocupem uma boa parte das secões dedicadas à cultura e que os ‘chefs’ e os ‘costureiros’ e ‘costureiras’ tenham agora o protagonismo que antes tinham os cientistas, os compositores e os filósofos” (A Civilização do Espetáculo, p. 35).
Porque, ficar apenas no exterior será curto, tal como nos lembrou Jesus: “Não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou beber, nem quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir. Porventura não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestido?” (Mt 6, 25).
Neste contexto, e em jeito de conclusão, poderíamos dizer que a roupa protege, diferencia e adorna um corpo que, como lembrou o sofredor Job, saiu nu do ventre materno e nu voltará para lá (Job 1, 21).
Mas como entender, então, esta Obra de Misericórdia (OM)? Quem são os que andam nus? Como contribuir para que o outro se sinta digno e próprio na sua individualidade?
Certamente que a concretização desta OM passa sempre pelo partilhar com quem tem menos, minimizando a exposição ao frio e ao desconforto e contribuindo para a dignidade alheia.
Por outro lado, sabemos que a nudez não é sempre sinónimo ou consequência da pobreza material. Por esse mundo fora há homens, mulheres, jovens e crianças a quem arrancaram, de forma violenta e injusta, as roupas para serem explorados. Também encontramos gente que vai perdendo a roupa que se rasga ou estraga por causa dos “arames” que precisa ultrapassar e em consequência das barreiras que precisa de transpor…
Vestir os nus será partilhar agasalhos, mas é também restituir ao outro a digna beleza que tem. E quantas situações rejeitam e negam esta verdade fundamental. Independentemente do aspecto exterior, da idade ou vigor físico, o outro tem uma dignidade que nenhuma nudez rouba ou diminui e que nenhuma roupa acrescenta: a dignidade de ser filho de Deus.
Por fim, e para lá do reconhecer da dignidade alheia, esta OM também se poderá concretizar através do envolvimento na vida do outro. Não para controlar ou explorar, mas para conhecer e respeitar.
JD, in Voz de Lamego, ano 86/18, n.º 4355, 22 de março de 2016
JUBILEU DA MISERICÓRDIA | DAR DE COMER
A misericórdia não pode reduzir-se a um vago sentimentalismo ou a um discurso sem consequências; a misericórdia precisa ser traduzida em gestos, tal como nos recorda S. João: “Meus filhos, não amemos com palavras e com a língua, mas com obras e em verdade” (1 Jo 3, 18). S. Tomás d’Aquino, na sua reflexão, concluiu que a acção mais agradável a Deus é o acto interior de amor a Deus (dilecção), mas a obra exterior que melhor expressa esse amor são as obras de misericórdia: “Quanto às obras exteriores, a súmula da religião está na misericórdia”.
Nesta perspectiva, assumem particular destaque as Obras de Misericórdia (OM). Tal como as conhecemos, acrescentadas ou reformuladas, ilustram bem as possibilidades de acção e todas podem ser vistas como expressão concreta do amor, uma forma de afastar a “indiferença”, de evitar a “anestesia” do espírito e de “acordar” a consciência, porque “não podemos escapar às palavras do Senhor, com base nas quais seremos julgados” (MV 15).
A primeira Obra de Misericórdia diz respeito a algo muito básico: “Dar de comer a quem tem fome”, o que nos coloca perante a pobreza, a miséria, o abandono. O seu cumprimento exige o fim da obsessão por possuir, por acumular, por procurar apenas o próprio benefício. Mas questiona também a forma como se possui ou usufrui: quantas vezes os desperdícios que se produzem não ilustram o modo superficial como se tratam as coisas? Trata-se de um dever de justiça, mais do que um gesto de bondade, tal como ensinava D. Hélder Câmara: “As pessoas não devem pedir, de chapéu na mão, aquilo a que têm direito de chapéu na cabeça”. A caridade não substitui a justiça.
A verdadeira misericórdia parte de uma grande valorização do outro como sujeito. Dar de comer ao outro como se fosse inferior, um objecto, um recipiente, não chega. Por isso, só dá algo a alguém quem é capaz de sair de si mesmo, deixando de ser autoreferencial, assumindo-se “em saída”. Não será fácil passar do consumismo à generosidade, a um espírito sereno que permita desfrutar das coisas simples da vida.
Uma das formas possíveis para cumprir esta e outras OM será sempre a acção de promover o outro. Uma coisa é dar algo para resolver uma necessidade imediata; outra coisa é ajudar a pessoa a conseguir algo com o seu esforço e criatividade. Num mundo competitivo facilmente se pode imitar Caim, mas perante a invisibilidade a que os mais fracos estão sujeitos, sempre ouviremos perguntar pelo nosso irmão (Gn 4, 9). Santa Faustina rezava: “Ajuda-me, Senhor, a que os meus ouvidos sejam misericordiosos para que tome em conta as necessidades do meu próximo e não seja indiferente aos seus sofrimentos e às suas queixas”.
À nossa volta, discreta ou abertamente, há gestos contínuos de generosidade. Mas nem sempre se evita algum pensamento ou juízo: a preguiça não pode ser premiada, os vícios devem ser combatidos e não alimentados, o desgoverno não pode ser ignorado, etc.
A concretização deste “dar de comer” pode assumir formas diversas: ajudar a bater à porta das instituições, salvaguardar direitos e garantias a quem não tem vez e voz, ajudar a gerir o que se recebe, patrocinar tratamentos necessários, dialogar para melhor conhecer, pagar o salário devido, respeitar a dignidade…
JD, in Voz de Lamego, ano 86/16, n.º 4353, 8 de março de 2016
JUBILEU DA MISERICÓRDIA | ARREPENDIMENTO
A cooperação do crente na salvação oferecida por Deus é algo de assumido e sempre desejado, tal como escreveu St. Agostinho: “Aquele que te criou sem si não pode salvar-te sem ti”. E nunca será demais recordar tal realidade neste Ano da Misericórdia, sob pena de pensar-se que tudo está feito e que o crente está dispensado de agir e querer merecer a misericórdia divina. Como escreveu o filósofo dinamarquês e protestante, S. Kierkegaard, somos cristãos na medida em que tomamos consciência de sermos perdoados dos nossos pecados. Se Deus é rico de misericórdia e está sempre disponível para nos perdoar, também é verdade que ao homem se pede que tenha consciência de ser perdoado e se mostre um arrependido agradecido.
O pecado é sempre uma ofensa a Deus. Diante do reconhecimento do pecado e decorrente do pedido de perdão, Deus espera do pecador um espírito contrito, pesado pela dor de O haver ofendido (cfr. Sl 51, Miserere).
A conversão é sinónimo de mudança de direcção, de um voltar-se para uma posição oposta, e significa mudar uma conduta contrária à vontade de Deus. Uma mudança que não se deve ficar pelas intenções ou palavras, mas se deve traduzir em obras.
O arrependimento, ou contrição, faz parte do sacramento da Reconciliação e acompanha o penitente que se confessa arrependido e pronto a mudar, a converter-se. Como poderia falar-se em conversão sem arrependimento? Nesse sentido, o concílio de Trento definiu o arrependimento como “dor de ânimo e reprovação do pecado cometido, acompanhadas do propósito de não pecar mais em relação ao futuro”.
O arrependimento dos pecados chama-se “contrição” quando é inspirado pelo amor filial para com Deus, digno de ser amado sobre todas as coisas; chama-se “atrição” quando é inspirado pelo medo. Como filhos amados de Deus, o nosso arrependimento deve inspirar-se no amor de Deus, mais que no medo. Em todo o caso, o arrependimento revela o propósito de abandonar o pecado e de esforçar-se por evitar as ocasiões para cair no mesmo pecado. Tal arrependimento exprime-se exteriormente na confissão e num compromisso concreto de penitência.
Por outro lado, a tomada de consciência do pecado cometido é fundamental para o pedido de perdão e o consequente arrependimento. Como pode alguém arrepender-se se não nem consciência do mal feito? A diminuição das confissões não é sinónimo de menos pecados, mas de uma perda de sensibilidade em relação ao pecado, levando a moral cristã ao silêncio. A atmosfera social não favorece a distinção necessária entre bem e mal.
Nesse sentido, tal como referido na semana passada, nunca é demais o esforço por formar a consciência. E é neste âmbito que se convida o cristão a fazer o seu exame de consciência, como quem se olha ao espelho, nomeadamente antes de se aproximar do confessor. Fazer o exame de consciência significa avaliar a sua própria posição diante de Deus, à luz da sua Palavra e reconhecer os pecados cometidos por pensamentos, palavras, obras e omissões, graves ou leves, com plena responsabilidade ou por fragilidade.
JD, in Voz de Lamego, ano 86/15, n.º 4352, 1 de março de 2016
Jubileu da Misericórdia: Consciência
No final da primeira carta enviada aos cristãos de Corinto, São Paulo deixa-lhes um apelo: “Estai vigilantes, permanecei firmes na fé” (1 Cor 16, 13).
A verdade é que, mesmo descuidando a vigilância (quedas, negações, distâncias, “saídas de casa”, uso da “lei de talião”…), Deus não desiste de cada um dos seus filhos e sempre espera uma tomada de consciência e um regresso humilde e confiante. É neste âmbito de pecador consciente, mas cheio de confiança na misericórdia divina, que o baptizado vive o sacramento da Reconciliação. Não se trata, pois, de uma tradição a cumprir ou de um dizer algo de si, mas de um encontro entre um Pai que ama e de um filho que tem consciência de que é amado.
A nossa liberdade é um dom que, como todos os dons, exige responsabilidade para não ser desbaratado. E é na ausência de tal responsabilidade (vigilância, firmeza) que o pecado pode acontecer. Tudo seria mais fácil se não fossemos livres! Mas que valor teriam então as nossas acções? Que valor teria uma decisão onde não existissem alternativas? A mesma liberdade que nos pode levar ao fundo também nos pode elevar. Dito de outra maneira, o “sim” é sempre valorizado pela possibilidade do “não”.
O jubileu é uma oportunidade para descobrir o valor e a beleza do sacramento da reconciliação. É verdade que se vai perdendo a dimensão penitencial da vida cristã, o que acarreta a perda de sentido da gratuidade da graça. O que é isso de precisarmos do perdão de Deus? O mesmo acontece no que respeita à salvação: salvos de quê e de quem? Como poderá alguém reconhecer a graça de ser perdoado na sua “divida” se nem sequer reconhece estar endividado para com alguém? Quando o homem já não se reconhece pecador, já não faz nada para evitar o pecado ou para o remediar.
Como facilmente se percebe, o sacramento da reconciliação supõe uma consciência devidamente formada. Tal como mostra a formação da palavra “consciência”, esta não é apenas fruto de esforços individuais, mas de um conhecer “junto”, em comunidade (família, educadores em geral, confessores, directores espirituais, amigos). Quando tal formação não existe corre-se o risco de se ficar por um “não mato nem roubo”, “não faço mal a ninguém” ou terminar com um “pedido de absolvição por tudo o que ficou por dizer”.
A consciência, que é definida como “voz de Deus em nós”, é instrumento de liberdade humana que procura o bem e a verdade. Ela revela a nossa identidade, gera um estilo de vida, indica uma maturidade pessoal, uma sensibilidade pela instância moral e social. Mas necessita de crescer, de ser formada e de se exercitar. Para não desaparecer ou ser deformada necessita da ajuda dos outros: Palavra de Deus, conselho, confronto leal e franco, do silêncio e da reflexão, da oração. A consciência é formada, educada, recta, verdadeira quando é “conforme à sabedoria do Criador (CIC 1783) e que essa educação é “tarefa para toda a vida” (CIC 1784).
No encontro com Cristo que salva, na escuta e na oração da sua Palavra, na relação com a comunidade eclesial, no confronto com os outros e com a realidade que o rodeia, o pecador encontra a sua própria imagem do filho amado e perdoado.
JD, in Voz de Lamego, ano 86/14, n.º 4351, 23 de fevereiro de 2016
JUBILEU DA MISERICÓRDIA: Reconciliação
Um dos capítulos do Catecismo da Igreja Católica (CIC) é dedicado aos “sacramentos da cura”: Penitência/Reconciliação (1422 – 1498) e Unção dos Enfermos (1499 – 1532). No âmbito do Ano da Misericórdia e na proximidade da celebração destes sacramentos, será sempre útil reler, individualmente ou em grupo, e divulgar tais parágrafos, não apenas para conhecer a doutrina da Igreja, mas também para melhor preparar a sua celebração.
O Papa Bento XVI, no Discurso à Penitenciária Apostólica, em 9 de Março de 2012, afirmou o seguinte: “O sacramento da Reconciliação, que se inspira numa consideração da condição existencial pessoal concreta, contribui de modo singular para aquela ‘abertura do coração’ que permite dirigir o olhar para Deus a fim de que entre na vida. A certeza de que Ele está próximo e, na sua misericórdia, atende o homem, mesmo o envolvido no pecado, para curar as suas enfermidades com a graça do sacramento da Reconciliação, é sempre uma luz de esperança para o mundo”.
A consciência do pecado que leva ao reconhecimento da culpa é condição sine qua non para pedir e esperar o perdão. E aqui se encontra uma das dificuldades experimentadas neste ambiente pouco sensível ao uso da consciência: humildade para se reconhecer pecador e coragem para pedir perdão.
Deixando para outro dia a referência às dificuldades que podem ser encontradas na vivência deste sacramento, a partir da leitura de algumas páginas do livro “A confissão – Sacramento da Misericórdia”, do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização (pp.16-21), poder-se-ia antes, neste breve texto, sublinhar diferentes realidades experimentadas por aqueles que se abeiram deste sacramento:
– Gratuidade. O perdão de Deus não pode ser adquirido, mas só implorado e recebido. Nesse sentido, o pecador está diante de um dom que o levará à gratidão;
– Luz. A misericórdia não é um vago sentimento que se instala e recebendo a remissão dos pecados, o homem é iluminado com a luz de Deus e torna-se capaz de ver o caminho e descobrir o sentido;
– Verdade. A súplica do perdão dirigida a Deus mantém vigilante a consciência do cristão sobre a verdade da sua condição pecadora. Tal como nos disse S. Paulo, não basta querer fazer o bem para evitar o mal. Atenção e vigilância nunca serão demais;
– Regeneração. Este sacramento renova a graça do Baptismo e consagra no caminho pessoal e eclesial de conversão. Trata-se de um sacramento de cura que acompanha na sequela de Cristo, amparando quem está marcado pela fragilidade e debilidade;
– Comunhão. O perdão oferecido por Deus nunca é uma realidade puramente individualista. O perdão de Deus é recebido no seio e mediante a Igreja. A reconciliação aviva a comunhão da comunidade. O eu do crente é inseparável do nós da comunidade;
– Admiração. Em Cristo, a revelação do pecado e do seu mistério individual e colectivo não pode ser separada da salvação que Cristo nos oferece. O cristão não teme tomar consciência pessoal do pecado e dele se confessar, porque está seguro da sua salvação. Nesse sentido, a par da confissão do pecado há lugar para a admiração agradecida.
JD, in Voz de Lamego, ano 86/13, n.º 4350, 16 de fevereiro de 2016