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Editorial Voz de Lamego: Jonas foi lançado ao mar

Estaremos ainda no mesmo barco?
Há mais de um ano, em 27 de março de 2020, o Papa Francisco subia a praça do São Pedro, num momento extraordinário de oração, lançando diversos desafios. Estamos todos no mesmo barco, sob uma tempestade que a todos surpreendeu. A pandemia do novo coronavírus colocou a descoberto muitas fragilidades. “A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades… Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”.
Desta pandemia sairemos melhores ou piores, mas não iguais. A esperança é que esta tempestade nos fizesse sentir verdadeiramente irmãos, para que todos se sentissem em casa, no mesmo barco, sob o mesmo céu e a caminhar sobre o mesmo chão. Havia quem profetizasse um tempo novo, em que tudo seria diferente, exultando a certeza de que ficaria tudo bem. Exultaram os ambientalistas (desencarnados da vida), pois o ambiente tornou-se mais respirável. Alguns (quase) sugeriram que o ser humano está a mais na terra!
Há muito tempo…
Deus chama Jonas e envia-o à grande cidade de Nínive, uma terra estrangeira, para dizer aos seus habitantes que estão à beira da destruição. Jonas hesita e segue, de barco, noutra direção, pouco interessado no destino dessa cidade. Abate-se uma grande tormenta e os tripulantes lançam sortes para saber de quem é a culpa, que recai em Jonas. Pegam nele e deitam-no ao mar. E a tempestade acalmou. Jonas acabará por cumprir a missão a que estava chamado por Deus e anuncia a necessidade de conversão.
Jonas tornou-se pesado. Não tanto do corpo, mas da consciência. Para ele, Nínive ser destruída ou salva seria igual. Não se lembra que o chão é o mesmo e estão debaixo do mesmo Céu. Também aqui a imagem do barco é sugestiva. Alguns pensarão que a desgraça dos outros não os atinge ou que sucesso alheio fere a sua paz. Na verdade, Jonas ficou irritado quando verifica que a cidade não foi destruída, pois os seus habitantes souberam mudar de vida!
“O Senhor interpela-nos e, no meio da nossa tempestade, convida-nos a despertar e ativar a solidariedade e a esperança” (Papa Francisco).
Se estamos no mesmo barco, cuidemos para que não se afunde. Passado mais de um ano, e quando as coisas parecem encaminhar-se para a bonança, nomeadamente com a vacinação, olhamos para o lado e vemos que alguns estão em belos camarotes, protegidos do sol e da chuva e com seguranças à porta; outros estão no convés a espreguiçar-se à espera de serem servidos; outros estão no porão a trabalhar no duro, alguns foram lançados borda fora, excluídos, por se recear que o barco tivesse peso a mais!
Ao tempo de Jesus, ouvimos por estes dias, com poucos recursos, cinco pães e dois peixes, é possível alimentar muitas pessoas. O milagre da multiplicação revela-se na partilha. No nosso tempo, a multiplicação é facilitada pela ciência e pela técnica, não faltam recursos, mas há muitas pessoas a morrer à fome, a mendigar uma côdea de pão, sem casa, sem acesso nem à educação nem à saúde. Não falta a multiplicação, nem o excesso, falta a solidariedade.
Quando uma pessoa passa privações, vendo a opulência dos vizinhos, mais tarde ou mais cedo vai sentir inveja, revolta, e vai perceber que talvez não esteja a usufruir daquilo a que tem direito pelo trabalho ou pelas riquezas do solo que habita. Um país (ou continente) por vacinar, vai promover a replicação dos contágios…
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 91/37, n.º 4619, 28 de julho de 2021
Editorial Voz de Lamego: Pobres sempre os tereis

As palavras de Jesus nada têm de resignação ou demissão, pelo contrário, revelando tristeza, são uma crítica e um desafio ao compromisso sério e concreto. Somos responsáveis uns pelos outros e sobretudo pelos mais pequeninos. A opção preferencial pelos mais pobres não é um verbo de encher, é um compromisso que radica nas palavras e na vida de Jesus. O que fizerdes ao mais pequeno dos meus irmãos é a Mim que o fazeis (cf. Mt 25, 40). Não se trata de transformar as pedras em pão, mas de fazer com que o pão de cada dia seja multiplicado e partilhado para que chegue a todos. E, se somos filhos do mesmo Pai, cabe-nos agir, sempre, como irmãos, procurando que a ninguém falte o necessário (cf. Atos 2, 45; 4, 34-35).
Esta aldeia global democratizou modas e estilos de vida, esbateu diferenças culturais, mas também incentivou grupos e povos a agir pela liberdade e pelos direitos humanos fundamentais. Globalizou-se o bem e o mal, numa mistura nem sempre benéfica para as populações mais vulneráveis. Como tem referido o Papa Francisco, os meios de comunicação social e as redes sociais, em vez de levarem à afirmação da identidade pessoal, social, religiosa, integrando as diferenças e a multiculturalidade, conduzem, muitas vezes, à segregação, na procura do que é idêntico, a integrar grupos (sectários) que pensam da mesma forma, a fechar-se e radicalizar-se ainda mais.
Pobres sempre os tereis… Não basta encher os lábios de propósitos ou simplesmente responsabilizar os outros por situações de carência e de miséria. Ao aproximar-se o final da Sua vida, Jesus encontra-se em casa de Marta, Maria e Lázaro. E como Maria tivesse ungido os Seus pés com uma libra de bálsamo de nardo puro, de grande preço, Judas Iscariotes, e por certo os outros discípulos, murmura contra tal desperdício (cf. Jo 12, 8). Jesus re-situa as opções e prioridades.
Há pessoas que subestimam a riqueza “material” da Igreja, alienável a favor dos pobres! Sem aprofundarmos essa temática, que tem várias vertentes, seria de perguntar se essas pessoas, que olham para esta riqueza material, cultural, arquitetónica, alguma vez se predispuseram a fazer a parte que lhes compete e se exigem o mesmo a governantes, a multimilionários, pessoas e empresas com capital incalculável!
Há bens que não se podem alienar, mas, por outro lado, esses bens, bem geridos, ajudam a criar e/ou manter estruturas de apoio aos mais pobres. O Papa Francisco afirma que os museus do Vaticano permitem receitas para ajudar os “mendigos” de Roma e responder a solicitações que chegam de todo o mundo.
Sei, por experiência própria, como pároco, que aqueles que colaboram com a Igreja e no “adorno” dos seus edifícios, são os primeiros a cooperar em campanhas solidárias, muitas vezes como aquela viúva do Evangelho que deu, não apenas do que lhe sobrava, mas do que lhe fazia falta para viver (cf. Mc 12, 41-44).
As responsabilidades podem ser diferentes, conforme as possibilidades, o poder económico-financeiro, a capacidade de influência sobre entidades, grupos, governos, multinacionais, mas ninguém pode excluir-se deste compromisso de atender às necessidades dos mais vulneráveis.
Não basta dizer aos outros que é preciso fazer alguma coisa, cabe a cada um, inserido em grupos e/ou comunidades, agir, comprometer-se.
Pobres sempre os tereis e se conseguirdes vê-los e ajudá-los… melhor! Dai-lhes vós mesmos de comer. Adorar a Deus e amá-l’O sobre todas as coisas implica-nos com todos os Seus filhos, com todos os nossos irmãos, não nos isola nem espiritualiza!
Em Portugal como na Europa, mais de 70 % da população adulta já está vacinada, pelo menos com uma dose, contra a COVID-19… em África, 3%… As migalhas dos países mais ricos ainda não saíram das suas mesas fartas!
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 91/36, n.º 4618, 21 de julho de 2021
Editorial Voz de Lamego: Não te reconheço!

É uma expressão popular que ouvimos muitas vezes sobretudo quando a outra pessoa nos surpreende positiva ou negativamente ou, então, quando vemos que ela não reage da forma como estávamos à espera que reagisse perante uma adversidade. Neste tempo de pandemia, ouvimos muitas expressões semelhantes, pois nem sempre reconhecemos imediatamente as pessoas com máscara. Já nos aconteceu, talvez a todos, cumprimentar uma pessoa, trocar algumas palavras e ficarmos a refletir quem seria tal pessoa!
É bem conhecida a expressão de Jesus a Filipe: há tanto tempo que estou convosco e não me conheces? (Jo 14, 7-14). Na parábola do Juízo Final (cf. Mt 25, 31-46), aqueles que são benditos a entrar no Reino ficam surpreendidos e questionam quando é que realizaram o bem. A resposta do Rei é concludente: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes”. O Rei reconhece-os e acolhe-os porque também eles O reconheceram no cuidado aos irmãos. Em sentido contrário, são malditos (não-reconhecidos) aqueles que não O reconheceram nos irmãos: “Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” (cf. Mt 25, 31-46).
A mesma expressividade na parábola das 10 Virgens, 5 prudentes e 5 insensatas. Como o noivo se demorasse, as virgens foram adormecendo. As sensatas levaram azeite de reserva, as insensatas não se precaveram. Quando o noivo se aproxima, as insensatas apressam-se a ir comprar mais azeite, mas quando regressam a porta está fechada. “Em verdade vos digo: Não vos conheço” (Mt 25, 1-13).
A pessoa enquanto tal é um mistério que nunca se expõe nem é exposta totalmente. Pelos perfis digitais, a pessoa diz e esconde muito do que é. Um amigo, um familiar, um colega de trabalho, pode parecer que se conhece bem, mas de repente…
Na Sinagoga de Nazaré, os amigos de Jesus acharam que O “conheciam” demasiado bem. Ele é o Filho de Maria e de José, o Carpinteiro. Conhecem os parentes e as ligações à comunidade, mas são surpreendidos pelas Suas palavras, pelos prodígios realizados e pela fama que, entretanto, tinha granjeado em outras terras.
Obviamente é bom e salutar que nos conheçamos e tenhamos consciência de que conhecemos bastante bem os nossos amigos e familiares, pois é sinal de proximidade, atenção e afeto. Conhecer bem pode, positivamente, ajudar a responder às necessidades, anseios e questões levantadas por eles. Negativamente, quando diminuímos a atenção e o cuidado, porque conhecemos, porque as reações são sempre as mesmas e assim as respostas também serão. Como exemplo paradigmático: casais que na conquista e no namoro procuram ser reciprocamente atenciosos, ouvintes, compreensivos… com o tempo deixam de surpreender e já não se centram tanto nas necessidades do outro mas mais nos gostos próprios…
Com ou sem máscara, com ou sem pandemia, a verdade é que deixamos de reconhecer algumas pessoas, positiva e negativamente, pelo que eram e por aquilo em que se tornaram. No tempo, somos sempre os mesmos, mas, simultaneamente, é bom e desejável que cresçamos, amadurecendo, aprendendo, como nos diz São Paulo, até à estatura de Cristo (cf. Ef 4, 13-15). O drama é quando crescemos e ficamos da nossa própria estatura, tornando-nos como Zaqueu antes de encontrar Jesus e se deixar ver por Ele (cf. Lc 19, 1-10). Zaqueu era um homem de vistas curtas e de pequena estatura, preocupado com os seus bolsos e com o seu umbigo, mas pelo caminho encontrou-se com aquele Mestre sábio e bom. Pôs-se em movimento, em bicos de pés, subiu a uma árvore… para descer da sua prepotência e sobranceria e caminhar ao lado de Jesus, acolhendo-o em sua casa e na sua vida.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 91/34, n.º 4616, 7 de julho de 2021
Editorial da Voz de Lamego: Stayaway Covid

Foi apresentado o Orçamento de Estado para o ano de 2021, num contexto difícil para Portugal e para o mundo, com um horizonte de futuro condicionado pela pandemia do novo coronavírus. Não me cabe a mim, nem é este o lugar para tal, discutir as virtualidades ou as limitações orçamentais. Há outros que o farão com muito mais fundamento, ainda que sempre prevaleça a janela de onde falam, refletem, discutem.
Entrou em vigor, na passada quinta-feira, 15 de outubro, o Estado de Calamidade. Duas medidas sobressaíram de imediato: o uso obrigatório de máscara nos espaços onde/quando não for possível manter a distância física de dois metros e a “obrigatoriedade” da aplicação “Stayaway Covid”. Instalei a referida aplicação logo que ficou disponível para o sistema operativo do meu telemóvel. Era uma recomendação. Poderá passar a ser uma obrigação, pelo menos no contexto escolar e profissional. Pensei que era mais difícil usar a máscara durante um dia inteiro, mas para meu espanto, afinal a aplicação pode pôr em causa a privacidade! E até, por momentos, deixámos de falar no Orçamento de Estado, uma ferramenta para as pessoas e famílias, para as empresas, com todas as incertezas quanto à evolução epidemiológica.
A aplicação, mesmo como recomendação, depende do bom uso da mesma, não isenta de outras responsabilidades e compromissos, como o distanciamento físico, o uso de máscara (em muitos contextos), a expressão dos afetos, os comportamentos em ambientes com algumas/muitas pessoas. A privacidade é um direito. Há pessoas que expõem as suas vidas ao segundo, o que estão a fazer, o que comem, o que vestem, que marcas usam, onde estão; opinam sobre tudo, sobre todos, valorizam as niquices e desvalorizam o que é essencial para os outros. Mas algo que é “imposto” para o bem de todos, faz esquecer que a nossa vida já está exposta de mil maneiras, que nos impõem valores, princípios e modas, através de leis, aprovadas quando ninguém está a ver, através de campanhas de des-informação, spots publicitários, direitos de antena, comentário nos órgãos de comunicação social. Como não evocar o episódio dos pais que acharam oportuno intervir na educação dos filhos, recusando o conteúdo de uma disciplina… e como logo se levantaram vozes, campanhas, acusações contra os pais por se oporem, pelo direito que têm a escolher a edução para os filhos, a um conteúdo específico…
Vem-me à lembrança outro episódio, este bíblico. O general Naaman é estimado pelo seu rei e pelo povo da Síria, é valente e robusto, mas tem lepra. Guiam-no até ao profeta Eliseu, que lhe manda dizer, por um mensageiro, que vá banhar-se sete vezes no rio Jordão. Começa a contestação: Porque é que Eliseu não se dignou recebê-lo pessoalmente? E porquê lavar-se no rio Jordão e não num rio do seu país? A resposta dos servos de Naaman é clarificadora: «Meu pai, mesmo que o profeta te tivesse mandado uma coisa difícil, não a deveria fazer? Quanto mais, agora, ao dizer-te: ‘lava-te e ficarás curado’» (2Reis 5, 1-23). Difícil seria voltarmos a estar confinados em casa! Usar uma aplicação, para o bem de todos, quando usamos dezenas de aplicações que recolhem dados sobre os nossos gostos, lugares que visitamos, pessoas com quem nos cruzamos… e o OE lá vai sub-repticiamente sendo discutido, com aprovação garantida, faltando apenas saber que dividendos políticos vão ter os diferentes partidos… estamos a discutir a bola… uma aplicação… e enquanto os “lázaros” continuam a pelear por algumas migalhas que caem da mesa da opulência e da indiferença…
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 90/45, n.º 4580, 20 de outubro de 2020
Editorial da Voz de Lamego: Regresso ao futuro

Não se regressa ao passado, mas pode revisitar-se. Regressar ao futuro não passa de um desejo de querer controlar o tempo, o espaço e a história. No imaginário cinematográfico e televisivo, surgiram filmes e séries que permitem o regresso ao passado, em que uma ou outra personagem aparece anos ou séculos antes, podendo modificar o futuro, mudando algumas engrenagens. A ida ao passado tem o propósito de corrigir, no passado, as situações presentes menos positivas, beneficiando uma pessoa, uma cidade ou um país. Mas ficou também no nosso imaginário o filme “Regresso ao Futuro”. A máquina do tempo abria essa possibilidade, mas o propósito de ir ao futuro era o mesmo de ir ao passado, neste caso, ver como se tinha desenrolado a vida, a história, as consequências futuras de determinados acontecimentos atuais, para que no regresso ao presente, a ação pudesse mudar o que não foi tão agradável para os próprios e para a humanidade.
É uma fartura ficcionada de regressos ao passado ou ao futuro. Mas, convenhamos, a vida é só uma, não tem voltas nem regressos temporais ou cronológicos; cabe-nos, a mim e a ti, hoje, aqui e agora, agir, decidir, fazer escolhas. A vida, em certo sentido, é linear, avança, não fica parada à espera que nos resolvamos ou que outros tomem as rédeas por nós, qual caudal de um rio que avança, mais rápido ou mais devagar, mais sereno ou mais tempestuoso, conforme a tipologia do terreno, a chuva que cai, a água que encontra, os obstáculos que surgem. Mas avança. Já dizia o velhinho na praça, o comboio não espera por ninguém! Quem chegou, chegou, quem não chegou fica em terra! Mas neste caso talvez fosse o barco e não o comboio!
Por experiência, vamos vendo que, por vezes, surgem novas oportunidades, que poderemos então aproveitar, mas podem também não surgir ou poderemos já não estar cá nós, então há que aproveitar o tempo atual. Quantas vezes à espera da melhor oportunidade, não adiamos o futuro que acabou por nunca chegar? E tornamo-nos amargurados com a vida e com os outros que realizaram sonhos e projetos, com sacrifícios e dores, mas tornaram-se pessoas felizes e sábias porque souberam viver o presente em cada presente!
O surto pandémico, do novo coronavírus, provoca-nos o sonho da espera, do adiamento, da expetativa. Quando em março, o país entrava em “paragem cardíaca”, no confinamento, em estado de emergência, que se foi renovando, bem pensávamos que no fim de maio, ou em pleno junho, ou talvez em finais de julho, ou quem sabe, em agosto, verão dos emigrantes e das festas, tudo estaria como dantes! Afinal, já vamos em meados de setembro e continuam a pairar sobre nós os cuidados, os números de infetados e as mortes, na expetativa confiante da criação de uma vacina segura e universal!
Não podemos voltar ao antes, mas também não podemos avançar para o futuro, ou suspender a vida até ver. Importa que avancemos, juntos, com todos os regressos possíveis, com todo o cuidado, mais do que nunca, respeitando o outro e o seu espaço. Como cristãos, cabe-nos cuidar. Cuidar também é salvar. Cuidar da segurança dos outros é responder ao chamamento de Jesus Cristo, tendo em atenção, sempre, em não deixar ninguém esquecido, em não deixar ninguém para trás ou excluído. Deus, a quem o futuro pertence, caminha connosco nas alegrias e nas adversidades.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 90/40, n.º 455, 15 de setembro de 2020
COVID-19: Testemunho de Ana Catarina Fernandes – Fisioterapeuta

Sou fisioterapeuta. Gosto de cuidar, do toque, do carinho e gosto muito de estar junto dos mais velhos. Acompanhei, e vivo, a realidade de ser fisioterapeuta num Lar de Idosos, naquele que também é o meu Lar. A minha casa. E pela primeira vez, durante estes meses, tive medo de cuidar. Dizendo melhor, tive medo de não os conseguir proteger. De um vírus que chega sem avisar, que não nos dá tempo de preparação e não nos ensina como devemos agir. Deste maldito vírus que tanto medo nos deixa. Que nos impede de tocar, de abraçar, que nos dá uma distância social de segurança e diz que nos devemos proteger “estando longe”.
“Estamos longe, para podermos estar todos juntos daqui a uns tempos”, dizia aos meus utentes, em jeito de justificar o porque de não poderem receber visitas, de não poderem sair do quarto, de verem as suas rotinas alteradas… dizia eu, como se fosse assim tão simples. Como se não custasse “estar longe”, dos filhos dos irmãos, dos netos. Como se fosse fácil de perceber o porque de terem de passar os dias confinados aos quartos. Como se fosse confortável que todos à sua volta circulassem com máscara, viseira, toca, luvas. Como se fosse assim tão simples entender, que nesta fase da vida, tenham de estar afastados para estarem protegidos. E foi aqui que percebi, eles são os verdadeiros heróis.
Pela resiliência com que aceitaram estes tempos. Pela forma como vivem a mudança. E foi aqui que senti, que não podia ter medo. E (re)descobri o porque de gostar tanto de estar e trabalhar junto dos mais velhos. Têm sabedoria e amor no olhar, sorriem com os olhos e veem muito para além das máscaras que temos na cara. Já viveram uma vida inteira e estão a ensinar-nos como devemos viver o NOVO dia-a-dia.
Ensinam-nos que devemos parar, que temos de aprender a valorizar mais, a agradecer mais e a ser mais. Que cada dia é um NOVO começo. Que tem de haver tempo, para estar, para sentir e para viver.
Ensinam-me todos os dias, sorriem-me todos os dias e eu? Eu fui abençoada com a sorte de fazer parte do NOVO dia-a-dia deles. De viver estes tempos com eles, no nosso Lar.
Hoje, passados estes meses, continuo a fazer o que mais gosto: a cuidar. Desejo que eles ainda possam viver muitos NOVOS dias junto daqueles que mais amam. E agradeço por me terem deixado tirar lições tão bonitas destes tempos tão difíceis que vivemos. Juntos.
Ana Carolina Fernandes, Fisioterapeuta / Cáritas Diocesana de Coimbra
in Voz de Lamego, ano 90/32, n.º 4567, 7 de julho de 2020
Editorial da Voz de Lamego: novo normal?!

Em novas situações emerge um novo vocabulário. É recorrente ouvirmos: “pandemia”, “distanciamento social”, “confinamento” e “desconfinamento”, “higienização”… entre outras!
Depois de uma grande tempestade, que desejamos? Regressar à normalidade, a uma normalidade possível, pois que nunca será igual, porque se perderam bens e, nalgumas situações, se feriram ou morreram pessoas, além do susto que pode gerar outra atitude: medo patológico (ainda que provisório) ou mudança das prioridades, sabendo que a vida (terrena) não é para sempre.
Em absoluto, mesmo quando não há tempestades, vamos despindo várias camadas e assumindo outras que nos fazem avançar, renovando as opções, normalizando as alterações e as novidades, numa espécie de espiral, integrando, debaixo da pele, o que nos acontece e, eventualmente, permitindo-nos estar mais preparados para outras situações.
Sob o reinado da Covid-19, já não se fala em regressar à normalidade, mas em assumir um novo normal, a tal normalidade possível, ajustando comportamentos e compromissos, sem esperar pelo controlo do novo corona vírus, mas convivendo com ele e não deixando de viver, de trabalhar, de confiar.
Em absoluto, nunca é possível voltar atrás, repetir os momentos, sejam negativos, que dispensamos, sejam positivos, que desejamos. A vida não se repete. “Nunca voltes ao lugar onde já fostes feliz”, como nos recorda, cantando, Rui Veloso, “Só encontrarás erva rasa / Por entre as lajes do chão / Nada do que por lá vires / Será como no passado / Não queiras reacender / Um lume já apagado”. Obviamente que a nossa memória emocional nos levará a recriar situações e momentos que nos fizerem bem e até podem, de facto, levar-nos a viver em dinâmica de bênção. Assim como assim, no entanto, estamos a avançar e não a repetir o passado, esse só podemos confiá-lo a Deus e mantê-lo na memória: se fomos felizes, podemos voltar a sê-lo. Temos pistas do que nos faz sentir em casa!
“Novo normal”. São duas palavras que me sugerem “conversão”, não como uma atitude pontual e definitiva, pode acontecer, mas como constante da nossa vida. Com efeito, precisamos de nos adaptar a novas situações, ora mais compassadas, ora mais urgentes, mas ainda assim, a vida continua, sempre nova, nunca se repete, não é igual para todos, nem todos ficarão bem, e os que ficarem bem, não ficarão em simultâneo ou na mesma medida. Numa perspetiva cristã, bem, bem, absolutamente bem, vamos ficar quando os nossos dias na terra estiverem cumpridos e Deus nos chamar a habitar eternamente com Ele. Estaremos a caminho de estar bem se confiarmos em Deus e nos “treinarmos” a amar, cuidar e servir…
Já aqui sugerimos, como leitura, “O desafio da normalidade”, do médico José Maria Cabral. É curioso, como buscamos tanto a novidade! Estamos com as antenas ligadas para vermos que modas vão surgir e como adaptarmos o penteado, a roupa, ou até a linguagem… e agora buscamos a normalidade. Por outras palavras, para voarmos precisamos de estar enraizados e certos de que poderemos voltar a poisar em chão seguro. A própria novidade assenta no que somos, temos e vivemos, só é novo comparado com o que já vimos ou experimentámos. Para nós cristãos, o normal é estarmos firmes pela fé e pela esperança, mas, sempre novo, a docilidade ao Espírito de Deus, abertos à ao futuro, para, hoje e a cada instante, renovarmos e concretizarmos o amor que nos liga aos outros.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 90/27, n.º 4562, 2 de junho de 2020
Utente recuperada no Lar de Idosos da Misericórdia de Lamego

A Santa Casa da Misericórdia de Lamego registou esta quinta-feira, dia 30, o primeiro caso de recuperação de COVID-19 num utente do Lar de Idosos de Arneirós. Após ter testado positivo ao novo coronavírus, a mulher, de 88 anos, permaneceu em isolamento numa ala desta estrutura residencial reservada às pessoas infetadas, período durante o qual a sua situação clínica manteve-se estável.
“É uma notícia que nos deixa muito animados, enquanto aguardamos que nos próximos dias os restantes casos efetuem novos testes de despistagem. Quero mais uma vez reafirmar que a Misericórdia de Lamego está a envidar todos os esforços para salvaguardar a saúde dos nossos idosos e dos nossos colaboradores”, afirma o Provedor António Marques Luís.
Na fase inicial do processo de contaminação do Lar de Idosos de Arneirós, treze utentes e dois profissionais testaram positivo à COVID-19.
RICARDO PEREIRA
Assessor de Imprensa, Santa Casa da Misericórdia de Lamego
Editorial da Voz de Lamego: lado a lado… na indiferença
Há mais vida além da pandemia do covid-19! Não há de ser o novo coronavírus a acabar com a humanidade; o que, em definitivo, acabará connosco será a indiferença, o egoísmo, a sobranceria, que se materializa na inveja, no desejo imoderado da posse, nos tiques ditatoriais de quem se sente e se situa acima dos demais!

Nada será como antes! Estamos todos de acordo. Mas será que os tempos que se avizinham serão melhores? As pessoas, finalmente, concluirão que estão no mesmo barco e que precisam e dependem umas das outras?
Têm surgido interpelações, iniciativas, reflexões, apelos à generosidade solidária e, antecipando o futuro, apontando prioridades, caminhos, possibilidades e urgências. Há, em alguns, um otimismo louvável, expresso e vivido como estímulo, como desejo, um caminho a seguir, como provocação para que os tempos de esforço, de sacrifício, de confinamento social, de tantos gestos de abnegação, na procura de soluções, na ajuda aos mais vulneráveis, na luta para confinar o vírus e proteger a vida das pessoas, cuidando para que ninguém seja esquecido, para que ninguém fique para trás, que se preste ajuda a quem precisa, presencial ou digitalmente, não sejam apenas um momento, mas como postura permanente na pós-pandemia.
Tantos são aqueles e aquelas que verdadeiramente deram e estão a dar a vida para salvar, para curar, para sarar os outros. Tantos, em tantas áreas, que não se furtam aos maiores esforços. Além dos que estão na linha da frente, na saúde, na segurança e na ordem, na alimentação, muitos outros estão disponíveis para ajudar, indo, ou, a partir de casa, aderindo a campanhas e iniciativas e deixam palavras de ânimo de incentivo, em diretos, diálogos e conversas, em concertos musicais, em declamação de poemas, em momentos de oração. E se o pão é necessário para sobreviver, a palavra e o ânimo serão fundamentais para viver. Pois só procuraremos o pão e o partilharemos se a nossa vida fizer sentido, se houver esperança, se soubermos que não estamos sós.
Como cristãos, cabe-nos, como antes, também agora, também depois, em todo o tempo, fazermos o melhor, o que está ao nosso alcance, mesmo que seja ficar em casa…
Nada será como dantes! Positiva e negativamente. Cada tempo é único. Há propósitos curiosos, parece que tudo vai ser diferente, e será, inevitavelmente, diferente, pois os tempos não se repetem! Um tempo novo, teremos que olhar mais para os outros, para as suas necessidades e sofrimentos, temos de fazer melhor, ser mais solidários, pensarmos nos mais frágeis, nos mais desfavorecidos… Mas quando passar a tormenta… há quem se tenha “habituado” ao bem e haverá quem volte ao que era antes.
Decisões tomadas em momentos críticos, dramáticos, sobre pressão, são decisões voláteis, que terminarão como começaram, com a mesma rapidez. Claro que nem tudo é branco ou preto, mas as opções fundamentais nascem da “conversão”, que as circunstâncias atuais podem facilitar, brotam de convicções, não se baseiam na pressão momentânea, mas na vontade firme de seguir um caminho, uma direção, contando com as circunstâncias de cada tempo. Em todo o caso, como se diz das grandes “concentrações de fé”, para alguns, podem haver o clique que faltava… afinal, já numa perspetiva mais religiosa, o Espírito de Deus sopra onde quer…
Como cristãos, cabe-nos, como antes, também agora, também depois, em todo o tempo, fazermos o melhor, o que está ao nosso alcance, mesmo que seja ficar em casa… haverá tempo para seguir o desafio do Papa e nos levantarmos do sofá!
Pe. Manuel Gonçalves,
in Voz de Lamego, ano 90/22, n.º 4557, 28 de abril de 2020
A casa, a descoberta de um novo Mundo
Alexandra Teixeira Esmeraldina Correia Leandro Sarmento Paula Teixeira
Fica em casa! Foi a expressão mais ouvida e lida desde o primeiro momento em que se percebeu que havia um inimigo invisível. As primeiras horas geraram ansiedade, nos portugueses, mas aos poucos, vamos percebendo que, afinal, há muito para descobrir e fazer entre quatro paredes.
Alexandra Teixeira vive em Valdigem e trabalha num lar. Até dia 7 de abril está por casa e fará parte da próxima equipa de trabalho para substituir a equipa que há muito faz de tudo para assegurar o bem-estar dos idosos. Alexandra conta-nos: “estou tão habituada a trabalhar, que me senti muito mal nos primeiros dias. Fui mesmo às lágrimas, pela ansiedade e o tédio de estar em casa. Mas tive que dar a volta à situação e programei algo de diferente, diariamente, com o meu neto. Estou a gostar porque há muito que não tinha tempo para nada e agora até experimento receitas novas, cuido das minhas plantas e brinco imenso com o meu netinho” diz a jovem avó. Ainda ressalva que “são momentos únicos com mais afetos, mais amor… uma união maior porque estamos obrigados a estar juntos e temos tempo para estarmos juntos à mesa”.
Paula Teixeira é educadora de infância e natural de Moimenta da Beira. Diz estar “tranquila a passar tempo com a família”. Aproveita para fazer o que muitos portugueses fazem, por estes dias, arrumar tudo aquilo na correria do dia-a-dia não dava tempo. Sendo educadora, mãe de três filhos e dedicada ao trabalho que desenvolve com paixão e dedicação. Paula acrescenta “ainda aproveito para orientar as minhas atividades para os próximos tempos. E peço aos pais para deixarem as crianças serem elas mesmas e felizes com muitas brincadeiras”.
Esmeraldina Correia vive numa aldeia pertencente ao concelho da Meda e mostra o que sente: “Tenho que encarar a minha quarentena, porque estar em casa é o melhor para mim e para os meus. Apesar da preocupação com tudo isto tudo que se está a passar… estar em casa é uma missão que todos devemos cumprir para o nosso bem”. Quanto ao que faz dentro de casa, Esmeraldina, que é apaixonada por música, diz que divide o tempo entre as limpezas, o exercício físico e a televisão.
Leandro Sarmento é de Tarouca e estudante de comunicação em Viseu. “Estar em casa nesta quarentena não custa nada, visto que é para o bem da saúde pública. O pior mesmo são as questões a nível profissional como a nível escolar. No meu caso, o Covid-19 está a dificultar um pouco. Sou finalista do ensino superior, está a ser difícil conseguir gerir a situação a nível de estágio e mesmo de findar o curso. Com as aulas online conseguimos acompanhar a matéria, mas ao mesmo tempo não conseguimos ser avaliados da mesma forma como se a pandemia não existisse, o que pode dificultar o término do curso”. Mas há outra questão que se levanta porque o Leandro também se dedica à música: “Estamos a ver o verão em risco devido a esta situação. No meu grupo, o Varosa, já não se ensaia há um mês e este tempo poderia fazer a diferença, mas com esta situação toda também assistimos ao cancelamento de espetáculos, ou seja, todos os esforços que vínhamos a fazer já desde outubro de 2019 como o deslocamento para ensaios e todo o trabalho feito para esta nova época está a ir pelo ‘cano a baixo’. Mas a quarentena não é o pior, de todo. O pior é o que acarreta tudo isto daqui para a frente”.
O jovem termina com uma simples frase dita por Rodrigo Guedes de Carvalho: “Aos nossos avós foi-lhes pedido para irem para a guerra, a nós pedem-nos para estar em casa no sofá”. Apelo que as pessoas não saiam de casa, pois não custa nada. Mesmo que saiam, que tomem as devidas precauções, pois o que se está a passar não é brincadeira nenhuma. Saúde para todos” desejou.
Andreia Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 90/18, n.º 4553, 31 de março de 2020