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CENTENÁRIO DAS APARIÇÕES | BEATOS E SANTOS
Nos últimos tempos, a propósito das Aparições de Fátima, temos escutado e lido notícias de beatificações e canonizações: o processo diocesano da Ir. Lúcia, com vista à sua beatificação foi concluído e seguiu para Roma e, mais recentemente, a notícia de que a canonização dos Beatos Francisco e Jacinta está para breve.
O que se quer dizer com tais palavras? Sem muitas explicações técnicas sobre o processo, que é exaustivo, demorado e caro, de maneira simples e breve, aqui fica uma explicação.
Para a “beatificação” (do latim beatus, abençoado) são necessárias três vozes: a voz do povo cristão, que atribui a reputação de “santidade”; a voz da Igreja (o Papa e a ajuda da Congregação para a causa dos Santos), através da declaração da “heroicidade de virtudes” (fé, esperança, caridade, prudência, temperança, justiça, fortaleza e outras; heroicidade significa fazer de si mesmo um dom total e durável no amor) ou do “martírio”; a voz de Deus, através de um milagre que se testemunha após invocação do Servo(a) de Deus e sua intercessão.
Para se iniciar este longo processo é necessário que decorram cinco anos após a morte da pessoa. Tal exigência visa impedir que se confunda a reputação de santidade com o entusiasmo popular passageiro. Contudo, o Papa pode dispensar tal período de tempo, como foi o recente caso de Madre Teresa de Calcutá e de João Paulo II.
Na diocese que promove o inquérito, sob a responsabilidade do bispo diocesano, são recolhidos testemunhos e documentos, favoráveis ou não, e tudo é enviado para a Congregação da causa dos Santos, em Roma. Foi isto que aconteceu recentemente com o processo respeitante à Ir. Lúcia.
Em Roma, partindo do que foi enviado, decorrerá um processo de averiguação e de contraditório para que a verdade se afirme sem dúvidas, com o contributo de especialistas na área da teologia, da medicina, da história, entre outros. O parecer favorável sobre a heroicidade das virtudes permitirá declarar o Servo(a) de Deus com o título de “Venerável”.
O processo com vista à beatificação continua e fala-se, então, do milagre (um feito prodigioso, frequentemente uma cura física, inexplicável pelo estado actual da ciência, atribuído à intercessão do Venerável). O reconhecimento do milagre, por parte do Santo Padre, permite avançar para a beatificação. Foi isto que aconteceu com os Veneráveis Francisco e Jacinta, permitindo a sua beatificação em 13 de Maio de 2000. Como nota, importa dizer que a beatificação de um mártir não necessita de milagre, uma vez que o martírio testemunha já uma ajuda especial recebida de Deus.
Normalmente, será necessário o reconhecimento de um novo milagre, posterior à beatificação e novamente atribuído à intercessão do Beato(a) para se avançar para a canonização. E escrevi “normalmente” porque o Papa pode dispensar deste milagre, como foi o caso do Papa João XXIII. E foi isto que aconteceu com os Beatos Francisco e Jacinta: um segundo milagre já foi reconhecido pelo Papa Francisco, o que deixa antever uma canonização próxima.
JD, in Voz de Lamego, ano 87/21, n.º 4406, 4 de abril de 2017
D. ÓSCAR ROMERO | Igreja beatifica arcebispo assassinado
No passado sábado, em Roma, o Papa Francisco presidiu à cerimónia de beatificação de Óscar Romero, o arcebispo de S. Salvador, capital de El Salvador, América Latina, assassinado no dia 24 de Março de 1980, enquanto celebrava a eucaristia. Uma beatificação desejada por muitos e adiada durante ano, mas que o Papa Francisco agora concretizou.
A beatificação significa o reconhecimento de alguém como fiel testemunha (é este o sentido da palavra “mártir”) da vida e da mensagem de Jesus Cristo. Um reconhecimento em duas etapas principais: a beatificação que reconhece bem-aventurado, uma felicidade que vem da vontade de viver segundo os Evangelhos, e a canonização, a plena aceitação da santidade e a sua apresentação definitiva como modelo a seguir para os cristãos da nossa época.
Mais uma etapa
Sobre a figura deste bispo martirizado muito se escreveu já. Mas, na proximidade da sua beatificação, apareceu nas bancas mais um livro: “”Óscar Romero. O amor deve triunfar”, de Kevin Clarke, das Paulinas, cuja leitura nos permite conhecer melhor a vida deste bispo, bem como as circunstâncias em que a sua vida se desenrolou e a sua morte aconteceu.
Em El Salvador, a causa da sua beatificação foi aberta em 1993, mas a ortodoxia e a lealdade de Romero à Igreja só seriam “confirmadas” em Julho de 2005. Trinta e cinco anos após o seu assassinato, os devotos de “San Romero” estão mais perto de o ver nos altares.
Às possíveis causas para tanta demora não serão estranhas algumas reticências levantadas por aqueles que sempre tiveram dúvidas sobre a ortodoxia de teologia da libertação, questionando se não existiriam motivações políticas associadas a motivações espirituais. Uma confusão que se desfaz quando se conhece a realidade em que tal teologia nasceu e se desenvolveu e quando são dadas oportunidades aos seus interlocutores para se explicarem. O que sucedeu com o actual Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que, enquanto professor, passou algumas férias no Peru e se tornou grande amigo e admirador de Gustavo Gutiérrez, considerado o “pai” da teologia de libertação.
Um testemunho
Precisamente, este peruano e actualmente dominicano G. Gutiérrez, deu o seu testemunho a propósito da beatificação de Oscar Romero, a quem o povo rapidamente canonizou e a quem o bispo Pedro Casaldáliga proclamou de imediato “San Romero da América Latina”.
No texto escrito, G. Gutiérrez diz que Romero “não procurou o martírio. Encontrou-o no caminho da sua fidelidade ao compromisso para com Jesus Cristo”. Apesar de avisado do risco que corria, escolheu não abandonar o seu povo. E até no dia do seu funeral houve distúrbios e mortes de inocentes e só algumas horas depois, quase às escondidas, o seu corpo foi sepultado na catedral.
Para este dominicano, O. Romero foi, antes de mais, um pregador atento e meticuloso que escrevia as suas homilias, cuja “voz era ouvida em todo o país”. E na sua pregação “reclamava uma sociedade justa, respeitadora de todos os cidadãos, porque só assim, segundo a Bíblia, poderia haver paz. A sua pregação continha, para lá disso, uma insistência no que respeita aos direitos dos pobres e dos oprimidos, como o fazia Jesus”. Uma perspectiva com a frescura do evangelho, mas que se revelou cara. Com efeito, “a morte do arcebispo foi resultado de um assassinato, crime provocado pela sua atitude firme de pastor que não se calou diante do mau tratamento imposto ao seu povo, vítima de injustiças e mentiras quotidianas”.
Óscar Romero não se escondeu do perigo nem pintou a realidade de tons neutros. O próprio afirmava: “Seria muito fácil ser servidor da palavra sem incomodar ninguém, uma palavra muito espiritual, uma palavra sem compromisso com a história, uma palavra que pode ecoar em qualquer parte do mundo, mas que não seria de nenhuma parte do mundo”.
O bispo martirizado escolheu ser o pastor próximo do seu povo e a sua palavra quis incarnar o Evangelho na vida do povo e de todos. O seu testemunho permanece vivo e o seu exemplo continua, certamente, a ser seguido por muitos onde a Boa Nova se faz vida e onde a vida dos mais fracos é defendida.
JD, in Voz de Lamego, n.º 4315, ano 85/28, de 26 de maio de 2015
BEATO PAULO VI: A IGREJA AO SERVIÇO DA HUMANIDADE
No passado domingo, em Roma, a Igreja beatificou o Papa Paulo VI. Sucedendo a João XXIII, que convocara o último Concílio, coube a Paulo VI conclui-lo e, mais difícil ainda, pô-lo em prática. Para muitos dos nossos leitores, este Papa é recordado com alegria, lembrando a sua vinda a Fátima (1967) ou as suas viagens (esteve nos cinco continentes). Outros o recordarão como alguém que, depois das expectativas decorrentes da novidade conciliar, protagonizou ensinamentos e decisões que pareceram anular tal abertura.
Homem do mundo
Todos nós olhamos para as viagens papais como algo normal, mas é importante dizer que Paulo VI foi o primeiro Papa a apanhar o avião para ir ao encontro do mundo. A audácia papal permitiu-lhe olhar o mundo tal como era realmente e não apenas a partir da Igreja. Um mundo que se transforma continuamente e que se apresenta com as suas conquistas, os seus riscos e as suas oportunidades.
Entre os gestos de Paulo VI, destaque para a sua visita às Nações Unidas. Em pleno Concílio, num tempo em que as viagens eram mais cansativas e demoradas, apanha o avião em Roma e, numa viagem relâmpago, vai até aos Estados Unidos da América e permanece 13 horas em Nova Iorque, discursando para o mundo na Assembleia das Nações Unidas. Uma breve presença marcada por um discurso ouvido com atenção e que serviu, também, para apresentar a Igreja como instituição “perita em humanidade”, companheira na caminhada, não apenas para estipular regras, mas também para partilhar os debates, os diálogos e as dificuldades da transformação do mundo.
A acção de Paulo VI pretende mostrar uma Igreja que não se limita a pregar uma espiritualidade desincarnada, mas implicada nas transformações da sociedade. Como uma instância de diálogo e não uma instância dominadora que julga, em diálogo e, em certa medida, ao serviço do mundo.
Homem do diálogo
Um dos seus conselheiros, o filósofo francês Jean Guitton, aconselhou a escrever uma Encíclica sobre a “verdade”, mas Paulo VI ofereceu ao mundo, no dia 06 de Agosto de 1964, a Encíclica “Ecclesiam Suam”, onde o Papa mostra uma Igreja que aprofunda a consciência que tem de si mesma e uma Igreja que se oferece ao mundo no diálogo.
Diante de um mundo que se afastava de Deus e da fé, encara a abertura da Igreja como forma de se aproximar dos que não crêem e dos que não confiam no discurso eclesial. E é esta mesma disposição para o diálogo e para a importância de saber estar no mundo que marca o último grande documento conciliar, a constituição Gaudium et Spes.
Neste particular, será importante também referir o singular encontro de Paulo VI com o Patriarca Atenágoras, em Jerusalém, há 50 anos. Uma data assinalada pelo Papa Francisco na sua recente viagem a Israel. Em perspectiva, o diálogo ecuménico, procurando reencontrar a unidade eclesial perdida e sempre desejada.
O espírito contestatário do Maio de 68 que, entretanto, chega a todo o lado exigiu-lhe perseverança, mas também decisões difíceis, nem sempre bem acolhidas. Os que com ele conviveram mais de perto dizem que sofreu por não ter sido compreendido, ao testemunhar as derivas, as caricaturas até, da abertura da Igreja diante do mundo.
Homem do concílio
Eleito quando o Concílio já tinha concretizado a sua primeira sessão, foi grande o seu papel na concretização e conclusão do mesmo. Morrera aquele que o convocara e instalara- se um certo desânimo perante o ritmo e a aparente indecisão quanto ao rumo a seguir. O aparecimento de Paulo VI imprime novo ardor e as suas orientações revelam-se preponderantes para o avançar e concluir dos trabalhos conciliares.
Todos são unânimes em aceitar a grande influência de Paulo VI em documentos conciliares fundamentais como são Lumen Gentium e, em particular, Gaudium et Spes. Este último mostra o compromisso da Igreja na sociedade, num diálogo desejado e permanente, e é, certamente, muito devedor da acção e ensinamento de Paulo VI, cuja visão sobre o assunto já havia sido apresentada na sua primeira encíclica.
Não restam dúvidas de que o concílio, reunião de todos os bispos, foi inspirado e assistido pelo Espírito, mas também sabemos como é fundamental a abertura humana para que o divino se manifeste e d’Ele seja instrumento. Num encontro com tão grande diversidade de personalidades, culturas e sensibilidades há um mesmo Espírito, mas há também necessidade de estabelecer linhas de actuação e consensos. Porque a história desta reunião magna não se resume aos dezasseis documentos aprovados e difundidos. Há também uma história intelectual dos bispos presentes, marcados por uma mentalidade e por uma formação bastante clássicas e que, graças ao contributo de especialistas e teólogos, se alterou e caminhou de encontro a uma sociedade em mudança.
in VOZ DE LAMEGO, 21 de outubro de 2014, n.º 4285, ano 84/47
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