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Editorial Voz de Lamego: Ouvi o rumor dos Teus passos…

O ruído é tanto! A azáfama! Os afazeres e as preocupações! As ofertas e os desafios! São tantas as vozes! O “zapping” comunicacional está tão acelerado! A multiplicidade de plataformas políticas e culturais, extremismos e propostas redentoras, com cariz revolucionário e transformador, com originalidade revestida de um passado prepotente e autocrático, que dificulta ouvir a voz da consciência e o rumor dos passos no jardim. As cidades, as vilas e as aldeias, as nossas povoações de um interior cada vez mais despovoado e desértico, têm demasiado ruído, demasiadas distrações, à janela ou na rua, no ecrã do telemóvel ou do televisor! Quem é que nos diz a verdade? Qual a opinião que devemos seguir? Quem é que nos vai mesmo ajudar? Quem é que se importa com a nossa vida atual?
No décimo Domingo do Tempo Comum (ano B) foi-nos servido, como primeira leitura, o texto do livro dos Génesis que nos fala na queda dos primeiros pais, simbolizados/encorpados em Adão e Eva, e como, quando confrontados com os seus atos, passam as culpas. Tão mau como cair no remorso é cair no cinismo e na desculpabilização gratuita. Precisamos de amadurecer o nosso compromisso, de assumir os nossos atos e as nossas omissões. Eu e tu somos responsáveis pela saúde do mundo em que vivemos, admitindo que possa haver pessoas, grupos ou empresas que têm uma responsabilidade acrescida.
O texto de Génesis (3, 9-15) fala da nossa vida e da nossa história. Adão, que fizeste, onde estás? «Ouvi o rumor dos vossos passos no jardim e, como estava nu, tive medo e escondi-me». Eu não fiz nada, foi Eva? / Eva, que fizeste? Eu, eu não fiz nada, foi a serpente? E se perguntássemos à serpente ela diria que não teve nada a ver com o assunto, tinha sido a beleza apetitosa dos frutos da árvore! A culpa já não estaria numa decisão pessoal, mas estrutural ou, pelo menos, não estaria numa escolha consciente e deliberada, mas numa cedência irrefletida pela aparente bondade do fruto. Não seria desejo… o fruto é que estava a pedir para ser recolhido e comido! Uma parábola para outras situações da vida! Fiz isto, ou aquilo, mas não tenho culpa, ele/a estava a pedi-las, pôs-se a jeito, estava ali mesmo à mão de semear, se não fosse eu, seria outro! Se o fruto não se convertesse em furto (egoísta) resultaria em desperdício!
Há momentos em que já não vemos Deus, ofuscamos a Sua presença com os nossos apetites e manias. Mas o rumor dos Seus passos no jardim, na nossa vida, os sinais da Sua presença, continuam a fazer-se sentir. O pior mal, contudo, não está nos fracassos, mas na vergonha e no facto de escondermos o nosso rosto e o nosso coração do olhar amoroso de Deus, que nos santifica e nos ilumina. Por vergonha, não assumimos as nossas falhas e até envolvemos os outros nos nossos esquemas. Tantas situações em que arranjamos desculpas, justificações, distribuímos culpas pelos outros, sacudimos a água do capote!
Apesar das nossas dúvidas, incongruências, hesitações, afastamentos, Deus mantém o Seu amor por nós e não fecha nem portas nem janelas ao nosso regresso. Desde sempre a promessa: a descendência de Eva esmagará a cabeça da serpente! A promessa Deus encontra eco em Maria: eis a serva do Senhor, faça-se em mim a tua Palavra (Lc 1, 38). Somos família de Deus quando permitimos que a Sua graça nos preencha. «Quem fizer a vontade de Deus esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe» (Mc 3, 26). Perscrutemos os rumores dos passos do Senhor na nossa vida e deixemos que o Seu olhar nos toque a alma.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 91/30, n.º 4612, 8 de junho de 2021
ONDE ESTÁS? COMO ESTOU? | Editorial Voz de Lamego – 27.02.2018
ONDE ESTÁS? COMO ESTOU?
Nas mais variadas circunstâncias do dia-a-dia, já atendemos chamadas de telemóvel e já escutámos outros a fazer o mesmo. E talvez já tenhamos dado conta que a mobilidade do prestável aparelho e dos seus utilizadores veio tornar possível e bastante usual a pergunta: “Onde estás?”.
Certamente que não será apenas a curiosidade ou vontade de controlar; pode revelar, também, preocupação perante a demora, o querer saber do paradeiro de quem se gosta ou o sentir alívio por constatar que se está próximo… Ou seja, pergunta-se para se saber do outro.
Também Adão e Eva, ao esconderem-se após tomarem consciência do acto realizado (comer o fruto da árvore proibida), ouviram do Criador a mesma pergunta: “Onde estás?” (Gn 3, 9).
Atentos, continuamos a ouvir tal pergunta. E compreendemos que esta visa mais do que saber da nossa localização; busca, sobretudo, provocar tomadas de consciência. Na verdade, o “onde” poderia entender-se “como”. Mais do que controlar, a pergunta evidencia a preocupação de quem ama.
Por outro lado, e como em tantos momentos da vida, também na Quaresma pode surgir a oportunidade de nos perguntarmos “Onde estou?”, em vez do habitual “Onde estás?”. Longe ou perto? Aproximo-me ou afasto-me? Sigo o caminho ou vou pelo atalho?
Na resposta, só tenho que ser o que sou, nem mais nem menos. E mesmo o silêncio não deixa de ser uma resposta. E não é precisa qualquer circunstância especial para escutar e perguntar-se. Quantas vezes a oportunidade surge em locais ou ocasiões banais das nossas vidas!
Se “Onde estás?” proporciona revelar a localização, “Onde estou?” permitirá confrontar-se e decidir-se. Na primeira basta olhar em volta para se situar; na segunda é preciso olhar-se e assumir-se.
Podemos formular mais vezes a primeira, mas não podemos evitar, de vez em quando, escutar a segunda!
Pe. Joaquim Dionísio, in Voz de Lamego, ano 88/13, n.º 4450, 27 de fevereiro de 2018