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Editorial da Voz de Lamego: Antes e para lá da pandemia

Sim, não é só para lá do orçamento que há mais vida, também antes e para lá da pandemia. Como está à vista, a pandemia veio tornar mais difícil a vida de empresas e de famílias, desequilibrar orçamentos e perigar as bolsas de valores, pôr à prova a resiliência de muitos e a agilidade dos governantes, exigir investimentos na saúde e na investigação. Como sublinhou o Papa Francisco, no dia 27 de março, a pandemia pôs a descoberto muitas fragilidades e a impossibilidade de continuarmos a ser saudáveis num mundo doente.
Há uma multidão imensa de pobres, de excluídos, de refugiados, de vítimas de violência doméstica ou de guerrilhas; crianças exploradas e esquecidas; mulheres com ventres esventrados e violados; famílias impedidas de o serem; crentes perseguidos e expulsos de empregos, das suas casas e dos seus países; crianças sem teto, sem pão, sem acesso à educação; tráfico de pessoas e de órgãos humanos; trabalho escravo, exploração sexual; descarte das pessoas que incomodam ou já não são úteis, tal como no nazismo. Tudo isto já existia antes da pandemia. O novo coronavírus fez parar o mundo ou, pelo menos, abrandá-lo, ao ponto de o ambiente estar agora mais saudável. E, no entanto, havia pessoas que morriam à fome e continua a haver muitas mais pessoas a morrer à fome.
A revista Além-Mar costuma presentar-nos com números e com percentagens que nos permitem ver rapidamente o quão longe estamos da fraternidade. No mês novembro, por exemplo, um estudo sobre o saneamento básico no mundo. É espantoso. Existem 2,3 milhões de pessoas sem saneamento básico. 297 000 crianças com menos de 5 anos que morrem todos os anos por falta de água potável e saneamento básico; 2 000 milhões de pessoas que usam água potável de fonte contaminada com fezes; 1 500 milhões de pessoas em todo o mundo que usam o serviços de saúde sem saneamento básico; 673 milhões de pessoas em todo o mundo que ainda praticam a defecação a céu aberto; 432 000 mortes anuais por diarreia provocada pela falta de saneamento; 1/3 fração de escolas em todo o mundo que não têm serviços de saneamento básico; é 20 vezes maior a probabilidade de crianças morrerem nos países em conflito devido à falta de saneamento básico do que devido à violência; 45% da população mundial tem acesso a uma gestão segura de saneamento básico em casa e 17% nos campos de refugiados.
Eis a população sem acesso a condições básicas de saneamento por zonas geográficas: 106 milhões na América Latina; 695 milhões na África subsariana; 176 milhões no Sudoeste asiático; 953 milhões no Sul da Ásia, e 337 milhões no Este asiático. São números, é certo, mas números de pessoas com nome, com rosto, com desejo de viver, mas sem muitas expetativas que não seja sobreviver mais um dia. E se avançássemos umas páginas na referida publicação, Além-Mar encontraríamos números sobre a exploração (escrava) do cobalto. Há um caminho longo a percorrer.
Entramos no caminho de preparação para o Natal. É um tempo de especial sensibilidade social. Sem esquecermos os de perto, podemos também ajudar os de longe. Por todos, diz o povo, não custa nada. Entre outras, duas campanhas solidárias, que já trouxemos à Voz de Lamego: 10 Milhões de Estrelas – Um gesto pela paz, da Cáritas, e a campanha do Banco Alimentar contra a Fome, na recolha de alimentos.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 91/04, n.º 4586, 2 de dezembro de 2020
Andreia Gonçalves entrevista Ana Margarida, a caminho da Guiné
“Quando olhar para aqueles rostos, será para mim, o mais próximo que estarei de DEUS”
Ana Margarida, Costa, vive em Tabuaço, é licenciada em direito e, no início do próximo ano, vai desempenhar um novo papel na sua vida, o de voluntária numa escola, na Guiné Bissau. Mia Couto e Pedro Chagas Freitas são dois os escritores que mais admira e desta experiência trará certamente capítulos, também eles, cheios de amor para contar no livro da sua vida.
As motivações de uma jovem que acredita na humanidade, numa entrevista exclusiva à Voz de Lamego.
Entrevistada por: Andreia Gonçalves
Quem é a Ana Margarida?
Sou uma mulher comum, licenciada em direito, e gosto pelas coisas simples da vida. Como estar com os amigos, estar com a família, ler, sentir o vento na cara e fazer valer as minhas convicções para o bem da humanidade.
Desde quando sonha em fazer uma missão humanitária?
Desde os 14 anos, que sonho em fazer voluntariado, mas nunca imaginei para onde seria…. Agora, sei que será em janeiro e para a Guiné. Numa escola que conta com 800 alunos, com idades compreendidas entre os 3 e os 17, e cerca de 40 professores voluntários.
Prometi ao meu avô, que faleceu em 2009, que voltaria a Bissau, onde esteve na Guerra colonial, desta vez, para lhe fazer justiça. E fazer o bem, sem olhar a quem!
Como se processou tudo isto?
Senti, que não podia adiar mais esta minha vontade. Inscrevi-me numa instituição, sem fins lucrativos “PARA ONDE” e aí haveria muitas possibilidades. Eu optei por esta e sinto-me muito feliz com esta minha decisão.
Como recebeu a notícia de que em janeiro, poderia ir ajudar centenas de crianças, na Guiné?
Depois de enviar a minha carta de motivação, passei por outros “testes” e a partir daí sentiram que eu teria perfil para fazer este caminho.
O que acha que vai encontrar nesta missão na Guiné? Quanto tempo vai estar por lá?
A minha missão será de um mês, sei que vou encontrar sorrisos, muitas crianças, o mais próximo que existe do rosto de Deus, para mim.
Depois, não haverá água potável, eletricidade, mas num bairro, com 12 mil habitantes, apreenderei como eles conseguem viver, dia após dia. Afinal haverá sempre um luar para olhar a cada noite.
Vai levar consigo, para além da coragem e da bondade, uma mala cheia de material escolar e roupa que tanta falta faz a estas crianças. O que mais precisa neste momento, tendo em conta que a viagem está quase aí à porta?
Vou levar uma mala, de 23 kg, com material escolar, e aceito a bondade de todos para a encher. pois aqueças crianças, não têm qualquer apoio e um simples lápis ou caneta valerá muito a pena. para além disso, borracha, marcadores, cadernos, pasta e escova de dentes, etc. Quanto à roupa, t-shirts e calções, roupa interior infantil, o mais leve possível. E assim farei o sol brilhar um pouco mais, quando chegar à Guiné, com ajuda de todos.
in Voz de Lamego, ano 90/01, n.º 4536, 26 de novembro de 2019
Editorial da Voz de Lamego: Dai-lhes vós mesmos de comer
No próximo Domingo, 17 de novembro, viveremos o 3.º Dia Mundial do Pobre, proposta do Papa Francisco que se vai impondo paulatinamente. Teve alguns críticos, dentro e fora da Igreja, por uma compreensão superficial e errónea do que se pretenderia, a começar pela formulação da comemoração, pois poderia entender-se que se estava a cristalizar, a elogiar e a justificar a pobreza. Uma coisa é defender a pobreza como opção que envolve humildade, despojamento e serviço ao próximo, e que obviamente, também pode incluir a produção de riqueza para promover o emprego e a disponibilidade de bens para mais pessoas; outra coisa é a resignação diante da pobreza imposta, a miséria a que milhões de pessoas estão sujeitas. “O compromisso dos cristãos, na vida ordinária de cada dia, não consiste apenas em iniciativas de assistência que, embora louváveis e necessárias, devem tender a aumentar em cada um aquela atenção plena, que é devida a toda a pessoa que se encontra em dificuldade”.
A propósito, a Madre Teresa de Calcutá era acusada de não pensar e não defender uma política de erradicação da pobreza na medida em que apostava na resposta imediata e concreta às situações que iam surgindo. Com o tempo, ficou claro que as políticas são importantes, e sobretudo quando têm efeitos práticos, mas não se pode virar as costas à situações do dia-a-dia. Enquanto se espera pela implementação das medidas as pessoas morrerem à fome e ao frio… O assistencialismo pode ser provisório, mas não pode ser desculpa para não ajudar, fazendo já o que é necessário e possível.
O Papa Francisco tem deixado claro o princípio da subsidiariedade: não deixar para os outros o que posso fazer, envolvendo outros em questões mais complexas, não deixar para amanhã o que posso resolver hoje. Incentivar o Estado e as estruturas centrais a resolver problemas mais complexos e crónicos, de forma sustentada, mas mantendo-nos, a mim e a ti, comprometidos com a pessoa que está à nossa beira. Com efeito, em diversas ocasiões, o Papa tem sido contundente em relação a governos e estruturas centrais, à política e economia, para um envolvimento mais efetivo e rápido ao grito dos pobres, dos desfavorecidos, daqueles que continuam a viver nas periferias existenciais. Os pobres clamam. Deus ouve a sua voz. Quem se recusa a escutar o grito dos excluídos, tapa os ouvidos, o coração, a Deus. Como não lembrar a expressão papal: “esta economia mata” ao colocar o foco nas percentagens de desenvolvimento e produtividade, nas estatísticas, nos ganhos das bolsas de valor, ainda que à custa dos pobres, pessoas e povos.
Na mensagem para esta terceira jornada o Papa não pode ser mais claro: “A numerosos grupos de pessoas, a crise económica não lhes impediu um enriquecimento tanto mais anómalo quando confrontado com o número imenso de pobres que vemos pelas nossas estradas e a quem falta o necessário, acabando por vezes humilhados e explorados… Passam os séculos, mas permanece imutável a condição de ricos e pobres, como se a experiência da história não ensinasse nada”.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 89/47, n.º 4534, 12 de novembro de 2019