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Editorial: Submetei-vos uns aos outros no temor de Cristo

“Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a Tua palavra” (Lc 1, 38). Em resposta ao chamamento divino, Maria apresenta-se pronta a servir, a esvaziar-se de si para se encher de Deus.
Ninguém é neutro ou imparcial. Na linguagem, na biologia, na psicologia, há tendência de excluir palavras que signifiquem opção, escolha, diferença, optando pelo neutro, pelo insosso, pelo indiferente e indistinto, colocando tudo no mesmo patamar, tudo relativizando. O curioso é que esta pretensa neutralidade irrompe (sobretudo) de grupos, movimentos, associações ideologicamente extremistas, excludentes de outras opiniões, à procura de provocar ruturas. A tolerância não tem a ver com indiferença, mas com aceitação do outro e de respeito pelas suas convicções.
Um dia destes ouviremos alguém a dizer que “de passagem” ouviu estas palavras de Maria e a Sua escolha e dirá que não se compreende como ainda são proclamadas na Eucaristia!
“As mulheres submetam-se aos maridos como ao Senhor… como a Igreja se submete a Cristo, assim também as mulheres se devem submeter em tudo aos maridos”.
No 21.º Domingo do Tempo Comum (ano B), escutámos um texto da missiva de São Paulo aos Efésios (5, 21-32). Não damos a mesma atenção a todas as leituras, até porque já as conhecemos! A Palavra de Deus deve ser escutada e não apenas ouvida. Daí a recomendação, sempre urgente, da formação cristã. Por outro lado, o desafio a que as leituras de Domingo se leiam previamente, durante a semana, e algum comentário que ajude a perceber o contexto e ajude a visualizar melhor a forma de viver a Palavra de Deus na atualidade.
Este pedaço de texto foi partilhado e comentado como escandaloso, advogando a distração dos cristãos ou a suposta perpetuação da discriminação das mulheres em relação aos maridos. Atente-se: a leitura começava assim: “Irmãos: Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo”. É uma mensagem firme e inequívoca que a todos implica, o cristão não pode senão amar ao jeito de Jesus. O apóstolo volta-se então para as esposas. Obviamente que o texto tem o seu contexto e o autor sagrado, ainda que inspirado por Deus, inserido na comunidade crente que reflete, acolhe e amadurece a Palavra transmitida e colocada por escrito, não é um robot que reproduz um ditado, mas um ser humano com um vocabulário específico e sujeito às coordenadas culturais e religiosas. Os textos de Paulo não são iguais aos de Pedro ou de Tiago.
A leitura continua. “Maridos: amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela”. Há uma ligação, um mistério, que une Cristo e a Igreja! A Igreja vive, serve e testemunha Jesus Cristo que, primeiramente, amou e Se entregou por ela.
O essencial é amar ao jeito do Mestre gastando a própria vida a favor dos demais. Cristo amou e entregou-Se pela Igreja. É o modelo do amor para os casais, mas igualmente para toda a Igreja, para cada batizado. Submetei-vos uns aos outros, colocai o outro em primeiro lugar, servi-o e amai-o, em Cristo, que veio, não para ser servido, mas para servir e dar a vida por nós. A “submissão” entende-se, habitualmente, como subjugação ao outro, situação de dependência e de escravidão, e até de humilhação desumana. Na lógica do Evangelho, contudo, prevalece a submissão por amor, voluntária, como escolha. A Vida, diz Jesus, ninguém ma tira, Sou Eu que a ofereço. Ele que era de condição divina, não se valeu da Sua igualdade com Deus, mas humilhou-Se a Si mesmo e tornou-Se obediente até à morte. Não há maior submissão do que esta. Sendo rico, fez-Se pobre para nos enriquecer com a Sua pobreza, despojado de todo o poder e majestade, revestido somente de amor, de compaixão e de ternura.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 91/40, n.º 4622, 1 de setembro de 2021