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Editorial da Voz de Lamego: Ao encontro de Abraão, da bênção e da paz

Por estes dias, de 5 a 8 de março, o Papa Francisco saiu, novamente, do Vaticano e deslocou-se ao Iraque, numa Viagem histórica, desejada por João Paulo II, mas só possível no pontificado atual. Tendo em conta o contexto sempre inseguro do Médio Oriente, tornou-se uma viagem com cuidados redobrados, acrescendo a isso o facto de estarmos a atravessar uma pandemia. Prevaleceu a vontade do Santo Padre e de todos quantos se empenharam nesta missão. Onde o Papa vai, vai com ele Jesus e o Evangelho, e uma mensagem de paz, de fraternidade e de bênção.
Um dos locais emblemáticos é a cidade de Ur, na Caldeia, atual Iraque, onde Abraão nasceu e viveu e de onde partiu para Canaã, respondendo ao chamamento de Deus. A figura de Abraão é incontornável para as três religiões (abraâmicas) monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Abraão é considerado o Pai da fé, por ter sido o primeiro, segundo a Bíblia, a acreditar num Deus único e pessoal. É uma herança comum. Há muitas mensagens e práticas que diferenciam os crentes das três grandes religiões, mas também há muitos pontos de contacto: a fé num Deus único, criador do Universo; o Patriarca Abraão, como pai na fé.
Abraão mostra que a prioridade da sua vida é Deus. Responde à Sua voz. Deixa a casa paterna, a pátria, sem saber para onde o Deus o guia, mas parte em total obediência e confiando totalmente no Senhor. Quando Deus lhe pede, como holocausto, o sacrifício do seu filho Isaac, Abraão, embora triste, porque era o filho da sua velhice, e que deveria perpetuar o nome e a descendência, não hesita, oferece-o a Deus. Se foi Deus quem lho concedeu, é a Deus que pertence.
Com Abraão, aprendemos que diante de Deus somos iguais. Não temos certificado de posse nem dos filhos, nem dos pais, nem do marido ou da esposa. Somos iguais. Somos filhos d’Ele, logo irmãos uns dos outros. Não temos direitos sobre os outros. Só Deus é Deus, só a Ele Lhe pertencemos realmente. E, porque Lhe pertencemos, não podemos ser escravizados nem instrumentalizados pelos outros e, da nossa parte, não podemos espezinhar ou desprezar os irmãos, porque o que fizermos ao mais pequeno dos irmãos é a Ele que o fazemos.
Nem sequer a terra é nossa. Deus chama Abraão, promete-lhe uma descendência e uma terra. Mas tal como a descendência, também a terra que lhe é confiada não tem um certificado de posse, mas para cuidar e para que também a terra seja refúgio e sustento da sua descendência e de todos os povos. «Abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar… na tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra». A voz de Deus faz-se ouvir: «Não levantes a mão contra o menino, não lhe faças mal algum». Não matarás. Não levantarás a mão contra o teu irmão. Foi o pecado de Caim, o ciúme e a inveja, que levaram ao fratricídio, que destrói a fraternidade. A mensagem que o Papa levou ao Iraque, com ênfase a partir de Ur, é o da fraternidade. Somos irmãos. Somos filhos de Abraão na fé. Professamos a fé no mesmo Deus único e criador. A religião não pode ser fratricida. “Da terra do nosso pai Abraão, afirmamos que Deus é misericordioso e que a ofensa mais blasfema é profanar o seu nome odiando o irmão. Hostilidade, extremismo e violência não nascem dum ânimo religioso: são traições da religião. O Céu não se cansou da terra: Deus ama cada povo, cada uma das suas filhas e cada um dos seus filhos! Nunca nos cansemos de olhar para o céu, de olhar para estas estrelas… O sonho de Deus: que a família humana se torne hospitaleira e acolhedora para com todos os seus filhos; que, olhando o mesmo céu, caminhe em paz sobre a mesma terra”.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 91/17, n.º 4599, 9 de março de 2021