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Editorial da Voz de Lamego: O encontro com o Senhor do Tempo

O tempo é uma espécie de espiral que se enlaça entre lutos e vidas novas, entre fins de ciclos que nos conduzem para novas situações e novos projetos. Com efeito, como seres humanos somos constituídos no tempo e inseridos no espaço, somos presente, enraizados no passado e impelidos para o futuro. As memórias solidificam o que somos e as capacidades que temos, permitem-nos caminhar entre as coisas boas que já fizemos, as menos boas que queremos e podemos evitar, para que na atualidade não sejamos fantasmas do que fomos. Por outro lado, como o amanhã pertence a Deus, olhamos para o futuro com esperança, pois Aquele que está no início também vai estar à nossa espera no final do caminho; Quem nos gerou para vida também garantirá que a nossa vida não se perde.
No final do ano litúrgico, particularmente nas parábolas de Jesus, que o Evangelho nos serve aos Domingos, somos colocados diante do Senhor do Tempo, como Juiz benevolente e Pai misericordioso.
No entretanto, sem Se ausentar, alheado e distante, Deus confia-nos o mundo, dá-nos o tempo, gratuitamente, os dons e os talentos, para que cuidemos uns dos outros e para administrarmos os bens da criação. A perspetiva não é o açambarcamento, mas a partilha que multiplica o que se dá! Como sublinha D. António Couto, o pecado dos primeiros pais não foi o comerem do fruto da árvore, mas o facto de o recolherem e o reterem só para si mesmos, sem deixar nada para outros. O que Deus dá não é para esconder, para guardar, mas para dividir. O que guardamos perde-se, o que damos multiplica-se.
No final da caminhada, Ele estará, como sempre, à nossa espera. Ajustamos contas, não com um estranho, mas com Alguém que nos conhece e que conhecemos. Precede-nos na vida e espera por nós para nos acolher na Sua habitação eterna.
O Reino de Deus é comparável a 10 virgens que esperam para receber e acompanhar o noivo ao banquete nupcial. Esperamos, não de braços cruzados, mas ativamente, vigilantes. Quem vai para mar prepara-se em terra. Parte do grupo prepara-se e leva azeite nas candeias e de reserva nas almotolias. As outras apostam na sorte: ou que o noivo venha cedo ou alguém possa ajudá-las caso fiquem sem azeite. Na verdade, somos responsáveis uns pelos outros. Mas há a responsabilidade pessoal, os outros não nos substituem, não vivem por nós. Deus não vive na nossa vez.
O reino de Deus é comparável àquele homem que partiu de viagem e confiou cinco talentos a um servo, dois a outro e um a outro. Os primeiros duplicaram o valor. O último, com medo, escondeu o talento, não produzindo. Não arriscou nada. O cristão é alguém que tem que arriscar. [Cf. Homilia do Papa Francisco no Dia Mundial dos Pobres, na página sete desta edição] O que nos é dado não é para devolver a Deus como Ele no-lo confiou, mas para o multiplicarmos, no cuidado por toda a criação, especialmente pela humanidade, e sobretudo na atenção privilegiada aos mais pobres, ao jeito de Jesus, traduzível na práticas das obras de misericórdia. No final seremos julgados pelo que fizemos aos mais pobres. É Jesus quem no-lo diz: o que fizeste aos mais pequeninos foi a Mim que o fizeste. A vida eterna começa em terra. O amanhã decide-se hoje, o final inicia-se na história e no tempo para que diante do Senhor do Tempo a nossa vida lhe seja entregue preenchida de amor.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 91/02, n.º 4584, 17 de novembro de 2020