Não lhe disse nada: estive só a ajudá-lo a chorar!
Li, como outras muito boas pessoas, a mensagem do Papa Francisco para esta Quaresma de 2017. E ao pensar no enunciado da sua epígrafe “A Palavra é um dom. O outro é um dom”, dei comigo a pensar no desafio de Jesus à samaritana junto ao poço de Jacob: “Se conhecesses o dom que Deus tem para dar e quem é que te diz, ‘dá-me de beber’, tu é que lhe pedirias, e Ele havia de dar-te água viva!” (Jo 4,10).
Na verdade, o dom a que se refere Jesus é Ele próprio, que é a Palavra do Pai, o Verbo de Deus, que nos dá a verdadeira água viva, mas que na sua passagem terrena mostrou ter sede perante a samaritana (cf. Jo 4,7) e no alto da cruz (cf. Jo 19,28). E, de facto, quem bebe da água do poço de Jacob ou da água de outras nascentes e fontes continuará a ter sede, mas quem bebe da água que Jesus dá nunca mais terá sede.E a água que Ele nos der há de tornar-se para nós e em nós fonte de água que dá a vida eterna (cf. Jo 4,13-14)…
Mas este dom é também o outro – o que sofre a fome e a sede, o nu, o sem-abrigo, o sem eira nem beira, o peregrino, o acidentado, o que sofre crise aguda, o enfermo ou o portador de doença incurável, o encarcerado, o moribundo, o defunto, o descartado, o oprimido, o usado, o explorado, o vendido e o mutilado, o pecador, o ignorante, o fraco. Neste está projetado o rosto de Cristo: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes” (Mt 25,40); e “Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” (Mt 25,45)…
São Paulo, além de outros aspetos, prescreve o antídoto para a preguiça e para a inveja. Contra a preguiça, temos a dedicação no afeto, na caridade na ação. E, quanto à inveja, recordo que o pior não é desejar desalojar o outro do balouço ou querer ter carro ou dinheiro como ele. O pior da inveja é ficar triste se os outros têm sucesso, se se alegram, e ficar radiante se os outros caem em desgraça, se choram – enfim, quando não os ajudamos. E não é preciso muito para ajudar. Às vezes basta ouvir ou até estar apenas.
Lembro-me de uma história de almanaque, que reza sucintamente que um pobre homem chorava por ter perdido a esposa em consequência de doença grave. Passou por ele uma senhora com um seu filho de tenra idade. Ao ver o homem a chorar, o menino saltou para o colo do estranho e a mãe reparou que as lágrimas do homem iam diminuindo até as faces ficarem perfeitamente enxutas. Entretanto, o miúdo voltou para a mãe, que lhe perguntou:
– Que lhe disseste?
– Eu não lhe disse nada – respondeu a criança – eu só estive a ajudá-lo a chorar!
Qualquer tipo de ajuda “que ajude mesmo” será uma boa forma de celebrar a Quaresma, que o Papa entende como “um novo começo, uma estrada que leva a um destino seguro: a Páscoa de Ressurreição, a vitória de Cristo sobre a morte”. É um tempo favorável em que o cristão é chamado, de modo especial, a voltar para Deus “de todo o coração” (Jl 2,12), não se ficando pela mediocridade da vida, mas “crescendo na amizade do Senhor”. Ele “é o amigo fiel que nunca nos abandona, pois, mesmo quando pecamos, espera pacientemente pelo nosso regresso”…
Assim, a Quaresma há de ajudar-nos a afeiçoar-nos ao dom Palavra e a acolhê-lo com vista à conversão ao dom de Deus e ao dom do outro, na oração e sacramentos, na caridade pela justiça e no apostolado, ainda que seja só ajudando o próximo a chorar. Deus adiuvet!
Louro de Carvalho
in Voz de Lamego, ano 87/17, n.º 4402, 7 de março de 2017