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Homilia de D. António Couto na festa de Nossa Senhora dos Remédios

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HOMILIA DA SOLENIDADE DE NOSSA SENHORA DOS REMÉDIOS

8 de setembro de 2016

Miqueias 5,1-4

Salmo 13(12),6; Isaías 61,10

Romanos 8,28-30

Mateus 1,1-16.18-24

 

  1. Pouca gente estremece de emoção, sorri ou canta ou dança de alegria, quando ouve esta sucessão de nomes, ao todo 47, que enchem a primeira página do Evangelho de Mateus, hoje por graça proclamada para nós. Pouca gente estremece. Muita gente quase adormece, vencida pela monotonia, sem lhe chegar a captar a alegria. Parafraseando Bento XVI, que escreveu na Exortação Apostólica Verbum Domini [2010], n.º 123, que «Podemos programar uma festa, mas não podemos programar a alegria», posso eu dizer agora que «Podemos programar uma festa, uma romaria, mas não podemos programar a alegria». Por isso, ao ouvir esta toada musical que interliga 47 nomes, nós já não estremecemos nem sorrimos nem cantamos nem dançamos de alegria. Mas devíamos fazê-lo, porque, ao ver uma tal sequência de nomes ali à flor da página, a verdade é que ninguém ficou sozinho, abandonado, descartado. Pelo contrário, todos estão ali lado-a-lado, em família, sentados à mesa do Reino de Deus. Nem os milénios separam Abraão de Jesus. Estão, na verdade, os dois ali, lado-a-lado, com José e Maria bem por perto. Esta é a técnica da miniatura, e a miniatura é de quem ama, porque não quer perder nunca ninguém de vista. É assim que Deus nos salva, sentando-nos todos, lado-a-lado, em família, ao redor de Jesus e de Maria.

  1. É assim também que o profeta Miqueias vê ali mesmo ao lado, ainda que a oito séculos de distância, uma mulher que dá à luz e amamenta o seu filho. Portanto, Miqueias vê exatamente como nós. Ele vê, eu vejo, tu vês, nós vemos Maria e Jesus. Não esqueçamos, porém, amados irmãos e irmãs, que esta maneira de ver supõe e requer um olhar puro e cristalino, carregado de luz e de alegria, como uma árvore carregada de frutos. Mais ou menos como os homens enviados por Moisés desde o deserto de Cadesh para averiguar como era a terra de Canaã. Partiram do deserto, e viram um cacho de uvas! Mas como podiam uns olhos habituados à aridez do deserto ver e perceber o que era um cacho de uvas! Encarregaram logo dois homens para o transportar com todo o cuidado, tão grande e bela lhes parecia aquela maravilha! E é assim que a tradição judaica vai encher de vinho o tempo belo do Messias, referindo que, nesse tempo, cada videira teria mil ramos, cada ramo mil cachos, cada cacho mil bagos, cada bago daria 460 litros de vinho!
  1. É verdade que só Deus pode juntar na mesma página, à mesma mesa, tantos irmãos e irmãs, que nós julgávamos perdidos e engolidos pelas páginas poeirentas do tempo. Só Deus pode pôr Miqueias a ver Jesus nascer a oito séculos de distância, como se tudo se passasse mesmo ali ao lado. Só Deus pode encher de vinho novo e generoso as nossas velhas talhas vazias. Só Deus pode pôr os nossos olhos embotados a ver tantas e tantas maravilhas!
  1. Mas que saber e sabor é o nosso, que nos contentamos em ser senhores das cascas, das banalidades, das trivialidades, de tudo o que reluz, mas nada sabemos nem queremos saber de Jesus e de Maria e de Abração, e do trabalho que Deus vai amorosamente tecendo no nosso coração?
  1. O Salmo 13 que hoje cantamos como Salmo responsorial pediu emprestado a Isaías 61,10 o refrão que repetimos: «Exulto de ALEGRIA no Senhor!». Traduzido mais literalmente soaria com mais força ainda: «Transbordo de ALEGRIA no Senhor»! Típico da gramática desta ALEGRIA, é que não se trata de uma alegria nossa, que em nós nasce e em nós começa. Se assim fosse, o lucro seria nulo, pois também em nós acabaria. Mas trata-se felizmente de uma ALEGRIA que vem de Deus, e por inteiro nos atravessa, nos enche a alma, nos enleva e nos eleva até Deus. Sim, é em Deus que esta ALEGRIA tem o seu começo e o seu fim. Bonito é que a figura que celebramos neste Dia, Maria, também tenha pedido este versículo emprestado a Isaías para conseguir compor, no Magnificat, a torrente da ALEGRIA que lhe inunda a alma e lhe faz pulsar a um ritmo novo o coração: «o meu espírito exulta de ALEGRIA em Deus, meu Salvador!» (Lucas 1,47), assim canta Maria. Quer isto dizer, amados irmãos e irmãs, que a ALEGRIA verdadeira não é do nosso mundo, não é daqui, não se compra nem se vende em pacotes servidos por aí. Típico desses pacotes é servir uma alegria líquida e passageira, que tem a duração de um gelado a liquefazer-se nas mãos de uma criança. A ALEGRIA que vem de Deus, que jorra do coração de Deus, não se programa, não se compra nem se vende, não se liquefaz, «ninguém vo-la pode tirar», diz Jesus (João 16,22), dura até à vida eterna. É a ALEGRIA que podeis serenamente contemplar, amados irmãos e irmãs, no rosto, na voz e nos braços de Maria, Senhora da Alegria e dos Remédios.
  1. Na sua bela Exortação Apostólica Evangelii Gaudium [2013], programática do seu pontificado, partindo da lição da Incarnação de Jesus, o Papa Francisco apontou à Igreja e ao mundo a «revolução da ternura» como o mais belo e fecundo programa de vida para estes tempos sombrios, enjoados e nublados. O Papa Francisco escreveu assim: «Na sua incarnação, o Filho de Deus convidou-nos à revolução da ternura» (n.º 88). Mas Francisco faz-nos também olhar para Maria com um olhar novo, puro, cristalino. Escreveu assim: «Sempre que olhamos para Maria, voltamos a acreditar na força revolucionária da ternura e do afeto. N’Ela vemos que a humildade e a ternura não são virtudes dos fracos, mas dos fortes, que não precisam de maltratar os outros para se sentir importantes» (n.º 288).
  1. Permiti, portanto, amados irmãos e irmãs, peregrinos de Nossa Senhora dos Remédios, que abra diante de vós o livro da ternura, e vos mostre o seu ritmo ternário. O nosso termo «ternura» deriva do latim teneru(m), que remete para a raiz ten-, patente nos termos latinos tenere, tendere e tenue, três aceções estreitamente conexas entre si. Tenere carrega o sentido de ter, aconchegar a si, abraçar, salientando a ternura como acolhimento, opondo-se a todas as formas de fechamento, rigidez e impermeabilidade. Por seu lado, tendere implica sair de si e ir ao encontro do outro, abrindo-se a ele de forma oblativa, dar-se a ele. Tenue, por sua vez, transporta consigo a doçura e a partilha, opondo-se à frieza e dureza do coração, à esclerose do coração, que o Evangelho conhece por sklêrokardía. As três aceções acenadas são inseparáveis e desenham uma nova maneira de estar no mundo, em tudo devedora, antes de mais, ao Deus bíblico que, por amor, sai de si e se debruça com ternura maternal sobre nós. E o mesmo faz Maria, por imitação, amados irmãos e irmãs. Ela estreita Jesus no seu colo, afaga-o com carinho, mas também no-lo entrega, estendendo os braços, para no-lo entregar, verdadeira razão de ser da nossa vida.
  1. O povo simples sabe e recita de cor orações e ladainhas a perder de vista, catálogos das maravilhas de Deus, e fá-lo com uma linguagem vivíssima, saltitante, incontrolável, como convém a Deus e aos seus Santos. Sempre que o povo reza, o povo chora e canta, estremece, emociona-se, comove-se, dança, exalta Deus como aquele que abate o ímpio orgulhoso e faz estremecer o justo humilde de incontida alegria. Quando o povo reza de verdade, expõe a Deus a sua dor e o seu pecado, ajoelha-se e canta a sua excelsa santidade, e vê Deus como Pai dos órfãos e defensor das viúvas, que dá uma casa aos sem-abrigo, visita quem vive sozinho, no monte maninho, sem pão nem vinho, seja velho ou menino! Beleza cénica, cromática, rítmica, encantatória, o povo nada sabe de um Deus descolorido e abstrato, mas sabe que Deus faz chover gotas de música, que envolve o pobre no seu manto de bondade, que mora mesmo ali mesmo ao nosso lado, sempre preparado para ajudar alguém mais triste, dorido ou desanimado. Povo Santo de Deus e de Maria, reza por mim, e ensina-me a rezar também assim.

Lamego, 8 de setembro de 2016,

Festa da Natividade da Virgem Santa Maria e Solenidade de Nossa Senhora dos Remédios

+ António, vosso bispo e irmão

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