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JUBILEU DA MISERICÓRDIA | DAR BOM CONSELHO
O percurso pelas Obras de Misericórdia espirituais começa pelo “conselho” que podemos e devemos oferecer, não para impor ou dominar, mas para servir e esclarecer. E todos, em algum momento da vida, já experimentaram a alegria de serem ajudados a ver melhor e a prestarem atenção a pormenores escondidos! Porque o ser humano é habitado pelo desejo de encontrar o bem e a verdade que o realizem.
Como ajuda para melhor se discernir, sem a obrigatoriedade de ser seguido, o conselho precisa de ser pedido para ser escutado. E todos os dias tal acontece: na família, no grupo de amigos, na comunidade cristã, na Reconciliação…
Mas também não podemos negar que algumas pessoas, mais do que conselhos, preferem ajudas de “oráculos” que não cessam de promover os seus “serviços”, oferecendo-se para resolver quase tudo. E são muitos os que escrevem, telefonam e consultam tais “entendidos” que, com a ajuda de objectos e técnicas, vão debitando sentenças e pseudo-ajudas. Isto nada tem que ver com a OM de bem aconselhar.
A prática desta OM tem a preocupação de servir a verdade e apresenta-se como ajuda que é fruto da caridade. Visa promover a consciência, educar o olhar, convidar a sair e a encontrar o mundo. Como facilmente se conclui, não se trata de exercitar a tagarelice ou incentivar a polémica.
Por outro lado, falar de conselho implica nomear a dúvida. A nossa humanidade não está isenta da dúvida que pode instalar-se e que precisa de ser controlada, sob pena de nunca se decidir ou chegar ao extremo de pôr tudo em causa e não confiar em ninguém. Nesse caso, sem espaço para a confiança, em si e nos outros, a vida tornar-se-ia absurda e penosa de viver.
Nem a fé está isenta de dúvidas, porque assenta na liberdade de uma resposta e na decisão de percorrer um caminho revelado. Muitos viram Jesus, ouviram-no, testemunharam os seus milagres e, no entanto, alguns não conseguiram ultrapassar as dúvidas de que fosse o Messias e rejeitaram-no.
Duvidar é próprio de quem quer ver melhor, exercitar a prudência e fortalecer a confiança, mas, se não for ultrapassada, a dúvida pode paralisar ou adiar decisões e compromissos. Assumida como meio, a dúvida pode contribuir para a humildade, para aumentar o conhecimento sobre si e para buscar a verdade.
E é neste contexto que surge o conselho, quando a dúvida permite e aprecia o contributo do outro, sem receio de pedir ajuda num momento de dificuldade. Mas o conselho, por mais sensato, sábio e oportuno que possa ser, nunca dispensa da inalienável liberdade de escolher nem isenta do risco de optar.
O conselho exige liberdade, pressupõe conhecimento e é o oposto da precipitação. Para o dar não se requerem competências extraordinárias ou habilidades discursivas, mas bondade de espírito e uma profunda vida espiritual (cf. Sir 37, 12). Todos conhecemos sábios que não foram à escola!
Aconselhar é um dom, não uma técnica, e exige liberdade de coração e distanciamento para ver e ouvir melhor (cf. Sir 37, 11). Não se trata de dizer ao outro o que deve fazer, mas ajudá-lo a encontrar uma resposta que já o habita, sugerindo possibilidades.
JD, in Voz de Lamego, ano 86/22, n.º 4360, 26 de abril de 2016
JUBILEU DA MISERICÓRDIA | ENTERRAR OS MORTOS
A última das Obras de Misericórdia corporais convida a sepultar os mortos. Embora não fazendo parte do elenco das boas obras louvadas por Jesus (Mt 25, 31-46), a Igreja inspirou-se nos gestos de Tobite para este acrescento (Tb 1, 15-18).
Num ambiente rural e cristão como o nosso, a morte de alguém é suficientemente divulgada e o acompanhamento acontece com naturalidade. Há sempre familiares, amigos e outros paroquianos que estão presentes e raros são os funerais sem cerimónia religiosa. Mas pode acontecer que, em ambientes mais urbanos, onde o anonimato facilmente se instala, alguns defuntos não sejam acompanhados e honrados.
O nosso tempo, tão marcado pela eficiência e pela cultura da aparência, tende a marginalizar quem já não tem forças, quem se apresenta com rugas ou deixou de ser autónomo. No mesmo sentido, e apesar de fazer parte da vida, a morte tende a ser “escondida” e deixam-se de lado certos rituais, quer em relação ao defunto quer em relação a familiares e amigos. Como alguém escreveu, “o secularismo em voga esconde a morte, censura o luto, delega as práticas de despedida”.
Sepultar os mortos revela respeito por quem chega ao fim da sua caminhada terrena, pela sua memória, pela sua herança. Trata-se de um último gesto para com o corpo humano, o mesmo que, em virtude da sua fragilidade, precisou de ser cuidado desde o seu nascimento. Por outro lado, sepultar é assumir a separação, já que o corpo do defunto não nos pertence.
Na celebração das exéquias, a Igreja encomenda a Deus os mortos e reanima a esperança dos fiéis e dá testemunho da fé na futura ressurreição com Cristo. Por isso, sepultar os mortos é uma obra de misericórdia para com um irmão que chegou ao fim da sua peregrinação, é um acto de louvor ao Criador e Senhor da vida, é uma oportunidade para se ver confrontado com a sua própria fragilidade e contingência, mas é também uma manifestação de fé e de esperança na Vida que continua.
Por outro lado, não se pode esquecer o acompanhamento e apoio devidos aos que choram, aos ficam mais sós e desamparados, aos que ficam mais desprotegidos, fragilizados e expostos. Porque não é fácil gerir um desaparecimento. A proximidade expressa comunhão e manifesta solidariedade e respeito nestas horas difíceis.
A este propósito, uma palavra de louvor e gratidão para quem se disponibiliza e arranja tempo para acompanhar quem chora e sofre. As muitas, belas e caras flores que se podem enviar não substituem nunca uma presença amiga e reconfortante, por mais discreta que seja. E a oração de sufrágio, não as estrondosas palmas, continuará a ser a mais bela e oportuna homenagem a quem parte, mesmo se marcada pelo silêncio. O Ritual das Exéquias lembra que “evitando as formas de exibicionismo vão, é justo que se dê a devida honra aos corpos dos fiéis defuntos” (Preliminares, n.º 3).
JD, in Voz de Lamego, ano 86/22, n.º 4359, 19 de abril de 2016