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Archive for 26/03/2016

HOMILIA DE D. ANTÓNIO COUTO NA PAIXÃO DO SENHOR

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UM AMOR NOVO, QUE NÃO É NOSSO, E QUE ESTAMOS SEMPRE A DEVER A TODOS

1. Foi-nos dada a graça de nos reunirmos aqui, na Casa de Deus, nesta Sexta-Feira Santa, para celebrarmos, unidos de alma e coração à Igreja inteira, a Una e Santa, a Paixão do único Senhor da nossa vida, «Aquele que nos ama» (Apocalipse 1,5), Jesus Cristo.

2. E foi-nos dado seguir, passo a passo, com a conversão do coração e o louvor no coração, o imenso relato da Paixão do único Senhor da nossa vida, a partir do Evangelho segundo S. João (18,1-19,42). Foi assim que atravessámos o Cedron e entrámos no «jardim». É de noite, mas arde a LUZ, a LUZ, a LUZ. É verdade que já não estamos todos. Judas perdeu-se na NOITE, na NOITE, na NOITE (João 13,30). Virá depois com archotes e lanternas, mísero sucedâneo da LUZ, e com armas (João 18,3), como um salteador. Vem prender a LUZ, mas cai encandeado (João 18,6). Tem de ser a LUZ a ofuscar-se por amor e a entregar-se a ele por amor. Neste ponto preciso, refere o relato de Marcos que nós fugimos todos, abandonando-o (Marcos 14,50). E fugidos andaremos, e perdidos, na noite e no frio, até sermos por Ele outra vez encontrados, acolhidos e recolhidos. Mas já, entretanto, Pedro, perdido, se acolhe a outra luz e se aquece a outro lume (João 18,18). E, interpelado, nega ter andado com Jesus, nega ter alguma coisa a ver com Jesus, nega ter parte com Jesus. Nega mesmo conhecer Jesus (Marcos 14,67-71; João 18,17-27).

3. Bem vistas as coisas, parece que Pedro não conhecia mesmo Jesus. Na verdade, Pedro afirmou, durante a Ceia, estar disposto a dar a vida por Jesus (João 13,37), porque era verdadeiramente amigo de Jesus. E pensava, de resto, que também Jesus estava disposto, se fosse o caso, a dar a sua vida por ele, porque era verdadeiramente amigo dele. Sim, a amizade e a simpatia são o cimento de verdadeiros grupos de amigos. E é da nossa humana experiência que os amigos a sério, a doer, estão sempre lá, disponíveis para se ajudarem uns aos outros, para se defenderem uns aos outros, se necessário for lutando contra os agressores do seu grupo de amigos, ou de algum dos seus membros. Era assim que Pedro via Jesus como fazendo parte do seu grupo de amigos. E estava disposto a arriscar a vida por Jesus, lutando por Jesus, se necessário fosse. É por isso que, no «jardim», quando os salteadores queriam prender Jesus, Pedro puxou da espada, e feriu o servo do Sumo-Sacerdote (João 18,10). Talvez alguns de nós, igualmente discípulos e amigos de Jesus, nos atrevamos a dizer que foi pena não o ter matado, e, já agora, se tivesse conseguido matar também os outros, melhor ainda! Ficaria ali o assunto encerrado, e Jesus não teria sido cruelmente assassinado, como vemos aqui, nesta ou noutra Cruz!

4. Pedro era, de facto, amigo de Jesus, até ao ponto de arriscar a sua vida por Jesus, defendendo-o fosse contra quem fosse. Sim, Pedro era amigo de Jesus, mas não conhecia mesmo Jesus! Pensava Pedro que a amizade de Jesus se esgotava naquele grupo de amigos que entusiasticamente o seguia desde a Galileia. A desilusão e a crise de Pedro acontecem quando Pedro se apercebe de que, afinal, a amizade de Jesus não se confinava a si e ao seu grupo. Antes, a amizade de Jesus rebentava mesmo as fronteiras aquele pequeno grupo, pois Jesus amava de forma diferente. Tão diferente, que amava também os seus inimigos, aqueles que o odiavam e o queriam matar, dando por todos livremente a sua vida. Foi, ao ver este amor novo, interminável e incontrolável de Jesus, que não se destinava apenas a ele e ao seu grupo, que Pedro entrou em crise profunda, se foi embora, andou perdido na noite, e se foi aquecer a outro lume. Mas foi também, ao compreender verdadeiramente este Amor novo e incontrolável de Jesus, que ama a todos, não se podendo confinar a uma pessoa ou a um qualquer grupo de amigos, que Pedro caiu de si abaixo, e saiu do pequeno palco em que se encontrava, para chorar lágrimas de dor e de amor novo. Como quem diz, com uma imensa expressão de espanto: «Há tanto tempo com Ele, e não o conhecia!». E pode acontecer que também nós, amados irmãos, sejamos levados a ter de dizer a mesma coisa. Mas é sempre tempo de implorarmos de Deus o dom das lágrimas e de começar a compreender este amor novo de Jesus, que a todos abraça, não sendo pertença exclusiva de ninguém.

5. Sim, entendido e abraçado este Amor novo, também Pedro saltará barreiras e fronteiras e irá pelo mundo inteiro anunciar e mostrar o Amor novo que encontrou em Jesus, amando ele próprio da mesma maneira, até ao ponto de vir também a dar a sua vida por Amor, amando também ele aqueles que o odiavam e o queriam matar, e o mataram.

6. Esta Cruz Gloriosa e Vitoriosa, que hoje adoramos, expõe diante dos nossos olhos (Gálatas 3,1) esse amor puro e gratuito, sem motivo e sem fundo, sem barreiras nem fronteiras nem grupos, que Jesus dedica a todos, sem exceção. A mim e a ti, aos pobres, aos doentes, aos estrangeiros, aos que o odeiam e nos odeiam, aos que o perseguem e nos perseguem, aos que o mataram e nos querem matar, como está a acontecer em tantas comunidades cristãs do Médio-Oriente e de alguns países de África.

7. Sim, este Jesus que expomos e adoramos nesta Cruz, é de todos, ama a todos, dá a sua vida por todos. Portanto, não podemos guardar ou resguardar o nosso amor a Cristo no nosso pequeno grupo de amigos ou de pertença, mesmo nos grupos ou movimentos intra-eclesiais, tantas vezes autoreferenciais. Compreendamos bem que Jesus rebenta todas estas ligaduras. E é só saindo ao encontro do outro por amor, é só sendo evangelizadores no meio deste mundo, que cumprimos o mandamento de Jesus de nos amarmos uns aos outros como Ele nos amou (cf. João 13,34; 15,12).

8. A peregrina Egéria, oriunda da Galiza, que em finais do século IV, visitou demoradamente os Lugares Santos, diz-nos que a Santa Cruz era então exposta à adoração dos fiéis duas vezes no ano: em 14 de Setembro e em Sexta-Feira Santa. Egéria descreve assim a adoração de Sexta-Feira Santa: «desde as 08h00 da manhã até ao meio-dia», «todos passavam, um por um: inclinam-se, tocam a Cruz com a fronte, e depois com os olhos a Cruz e a inscrição, a seguir beijam a Cruz e saem, sem que ninguém toque com a mão na Cruz» (Itinerarium, 36,5; 37,3).

9. Adoremos nós também, com amor, amados irmãos e irmãs, neste Dia de Sexta-Feira Santa, a Santa Cruz do único Senhor da nossa vida. Ao acariciarmos a Cruz de Jesus, sintamo-nos também por Ele acariciados. O contributo que depusermos aos pés da Cruz do Senhor destina-se à conservação dos Lugares Santos da Terra Santa, e é também uma carícia fraterna para os nossos irmãos perseguidos das igrejas do Médio Oriente.

Lamego, 25 de março de 2016, Homilia na Celebração da Paixão do Senhor

+ António, vosso bispo e irmão

JUBILEU DA MISERICÓRDIA | VESTIR OS NUS

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A roupa que usamos esconde a nudez com que nascemos e contribui para a afirmação da nossa identidade e para a preservação da nossa individualidade. Instintivamente, por causa do frio, o homem sempre procurou cobrir-se, mas também como necessidade de salvaguarda e afirmar a sua intimidade e identidade. Por outro lado, e para lá da e do conforto oferecido, a roupa é um adereço para o corpo, tal como o são tantos outros adornos que variam segundo as culturas e os gostos de cada um.

A roupa é fonte de negócios para muitos e contribui para celebrar festas e acontecimentos. Mas todos poderão reconhecer alguma futilidade e superficialidade em certas áreas neste sector. O essencial da vida está para além destes adereços e o homem será sempre mais do que aquilo que veste, embora, às vezes, sejam os “trapinhos” a determinar a notícia e a imagem!

A este propósito, o nobel da literatura, Mário Vargas Losa escreveu: “Na civilização dos nossos dias é normal e quase obrigatório que a cozinha e a moda ocupem uma boa parte das secões dedicadas à cultura  e que os ‘chefs’ e os ‘costureiros’ e ‘costureiras’ tenham agora o protagonismo que antes tinham os cientistas, os compositores e os filósofos” (A Civilização do Espetáculo, p. 35).

Porque, ficar apenas no exterior será curto, tal como nos lembrou Jesus: “Não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou beber, nem quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir. Porventura não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestido?” (Mt 6, 25).

Neste contexto, e em jeito de conclusão, poderíamos dizer que a roupa protege, diferencia e adorna um corpo que, como lembrou o sofredor Job, saiu nu do ventre materno e nu voltará para lá (Job 1, 21).

Mas como entender, então, esta Obra de Misericórdia (OM)? Quem são os que andam nus? Como contribuir para que o outro se sinta digno e próprio na sua individualidade?

Certamente que a concretização desta OM passa sempre pelo partilhar com quem tem menos, minimizando a exposição ao frio e ao desconforto e contribuindo para a dignidade alheia.

Por outro lado, sabemos que a nudez não é sempre sinónimo ou consequência da pobreza material. Por esse mundo fora há homens, mulheres, jovens e crianças a quem arrancaram, de forma violenta e injusta, as roupas para serem explorados. Também encontramos gente que vai perdendo a roupa que se rasga ou estraga por causa dos “arames” que precisa ultrapassar e em consequência das barreiras que precisa de transpor…

Vestir os nus será partilhar agasalhos, mas é também restituir ao outro a digna beleza que tem. E quantas situações rejeitam e negam esta verdade fundamental. Independentemente do aspecto exterior, da idade ou vigor físico, o outro tem uma dignidade que nenhuma nudez rouba ou diminui e que nenhuma roupa acrescenta: a dignidade de ser filho de Deus.

Por fim, e para lá do reconhecer da dignidade alheia, esta OM também se poderá concretizar através do envolvimento na vida do outro. Não para controlar ou explorar, mas para conhecer e respeitar.

JD, in Voz de Lamego, ano 86/18, n.º 4355, 22 de março de 2016