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Archive for 10/08/2015

Homilia de D. António Couto na despedida da Virgem Peregrina

imagem peregrina de fatima em lamego 2015 rui pires (24)

EUCARISTIA NA DESPEDIDA DA VIRGEM PEREGRINA DE FÁTIMA

  1. Vê-se uma beleza a perder de vista quando se vê o mundo pelos olhos de Jesus e de Maria. Entrando nesse mundo novo e belo, vemos logo que só se nos oferece uma alternativa: ser alcançado por Deus, sem fugir dele,/ ou fugir de Deus, em vão, porque Ele nos agarra na mesma.

  1. Aos judeus, que dizem conhecer bem a identidade de Jesus, porque conhecem o seu pai e a sua mãe (João 6,42), Jesus responde, apontando para o seu verdadeiro Pai, que os judeus desconhecem: «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (élkô)» (João 6,44). Os judeus falam do pai de Jesus, José. Mas Jesus fala do seu verdadeiro Pai, Deus. Aos judeus, Jesus aponta o seu verdadeiro Pai, o único que nos arrasta até Jesus, o pão vivo descido do céu, que é a sua «carne», isto é, biblicamente falando, a sua forma de viver, a sua verdadeira identidade. Lição para todos nós: não basta conhecer Jesus em termos genealógicos, históricos e geográficos. É preciso conhecer o Jesus descido do céu, e aderir à sua forma de viver, fazer nossa a sua vida, deixar entrar em nós a vida eterna, aquele pão descido do céu. Não basta falar de Jesus; é preciso «vir ter com Jesus». Mas ninguém pode vir ter com Jesus, se o Pai não o arrastar até Ele. O IV Evangelho ensina-nos que é Jesus que explica o Pai (João 1,18) e que conduz ao Pai (João 14,6). Na passagem do Evangelho de hoje, ficamos a saber também que é o Pai que explica Jesus e que conduz, por arrasto, a Jesus.

  1. Vê-se bem, por debaixo do falar de Jesus, o teclado do Antigo Testamento. Em dois momentos. Um é aquele: «Todos serão ensinados por Deus» (João 6,45), que é uma citação de Isaías 54,13. O outro é aquele: «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (élkô)» (João 6,44), que tem por debaixo Jeremias 31,3 [38,3 LXX], que refere textualmente: «Com um amor eterno Eu te amei; por isso te arrastei (mashak TM; élkô LXX) com carinho (hesed)». É demasiado pobre não reparar nisto. É demasiado belo reparar nisto. Há neste amor de Deus por nós uma paixão declarada, força ou coação que o verbo arrastar traduz bem. Mas a expressão completa é: «arrastar com carinho». Entendamos então, amados irmãos e irmãs, que Deus luta por nós, arrasta-nos tantas vezes, mas sempre com carinho!

  1. No Evangelho de hoje, os judeus «murmuram» de Jesus, afastando-se dele. Murmurar é pensar mal e dizer mal de alguém. Dizer bem, bendizer, é unir. Dizer mal, maldizer, é separar. Como os judeus, também Elias «murmura», diz-nos o célebre texto de 1 Reis 19,4-8, que hoje tivemos a graça de ouvir. No dizer de Elias, Deus não age como devia agir, o mundo está todo pervertido, anda tudo ao contrário, e já não faz sentido continuar a viver. Porque Deus não age como ele quer, porque o mundo não é como ele quer, Elias, desgostoso e desanimado, corre para a morte, que ele vê como a única saída para a sua vida sem sentido. Tudo somado, e como ele diz, Elias não é mesmo melhor do que os seus pais (1 Reis 19,4), os do tempo do Êxodo e da travessia do deserto, e, tal como eles, também murmura, falando mal de Deus, dos outros e do mundo. Às vezes, também nos assalta este pensamento perverso: «está tudo errado, menos nós!».

  1. Mas Deus, o verdadeiro Deus, não fala mal de Elias, mas ama Elias, e vai conduzi-lo, isto é, arrastá-lo com carinho, ao caminho certo. Não deixa morrer Elias, e vai dar-lhe lições de vida verdadeira. Deus também não fala mal de nós, mas ama-nos. Na linha do que bem nos fala hoje o Apóstolo Paulo na Carta aos Efésios (4,30-5,2): «Nada de azedumes, irritação, cólera, insultos, maledicências, maldade» (Efésios 4,31). Em vez disso, Paulo quer que nós sejamos «imitadores (mimêtês) de Deus, como filhos amados (tékna agapêtá)» (Efésios 5,1). Outra vez: Deus não fala mal de nós, mas ama-nos! E, porque nos ama, arrasta-nos, luta por nós, já não pode viver sem nós!

  1. Sejamos então nós também, amados irmãos e irmãs, não murmuradores, mas imitadores, de um Deus que nos ama e por amor nos arrasta, lutando por nós até ao fim:

Tão pouco e tanto

Nos pede Jesus,

E para espanto nosso,

O Filho de Maria

Vem vestido de irmão nosso

De cada dia.

Ele anda por aí,

Ao frio e ao calor,

Rico e pobrezinho,

Nosso Senhor.

Vem, Jesus,

Senhor do mundo,

Do sol e da lua,

Bate à minha porta,

Entra em minha casa,

E que, por graça,

Possa eu entrar também na tua.

E também Maria, Mãe de Jesus e nossa Mãe, Virgem Peregrina de Fátima, hoje no meio de nós, se fez «imitadora» de Deus e do seu Filho Jesus, sem reticências, sem «ses» e sem «mas»:

Assim te entregaste a Deus,

De coração inteiro,

Como um tinteiro

Todo derramado numa página.

Sim, tu és a mais bela página de Deus,

A Deus doada, apresentada, dedicada,

Mãe da vida consagrada,

Ensina-me a tua tabuada,

A tua suave e terna alegria,

A luz do Evangelho que te aquece e alumia.

Eu te saúdo, Maria,

Neste dia da tua peregrinação.

E porque os teus filhos, estes teus filhos queridos, sabem bem o valor e o calor de uma Mãe como tu:

Vão os teus filhos

Em procissão de amor,

Atrás do teu andor,

Na mão uma flor.

Recebe-a, mãe,

E acolhe-nos sob a tua proteção,

Hoje e em cada dia,

Ave-Maria.

E pelo teu amor de mãe, Senhora,

Recebe, nessa flor, a nossa gratidão,

Enche os nossos pés de prontidão,

As nossas mãos de paz,

Os nossos lábios de oração,

Os nossos gestos de perdão.

E caminha connosco,

Dá-nos a mão,

No que falta cumprir da nossa procissão. Amen!

Lamego, Eucaristia na despedida da Virgem Peregrina de Fátima, 9 de Agosto de 2015

+ António, vosso bispo e irmão