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5.ª Conferência Quaresmal de D. António: Uma vida com mais amor
(Foto da Visita Pastoral de D. António Couto à Penajóia)
Uma vida com mais amor, graça e Deus
As programadas cinco conferências quaresmais ficaram concluídas no passado domingo. Ao longo de cinco semanas, de forma consecutiva, D. António Couto esteve na Sé para nos falar de Deus e nos convidar a um seguimento atento e contínuo. Aqui fica mais um breve relato, na esperança de, em breve, podermos usufruir da integralidade de tais catequeses.
A Quaresma é uma oportunidade para crescer diante de Deus, protagonizando sentimentos e gestos que denotem vontade em querer imitar Jesus Cristo, que viveu de forma radical o seu amor pela humanidade, não fazendo acepção de pessoas e doando a sua vida por todos. E como é difícil conjugar e concretizar, na primeira pessoa, um amor completamente gratuito que não actua em função do benefício esperado, mas apenas pela satisfação própria de fazer o bem!
Para nos ajudar nessa reflexão, D. António Couto partiu de três “ensinamentos” rabínicos…
a) Os três amigos
Um homem tinha três amigos, a quem distinguia hierarquicamente, segundo o “tempo gasto” com cada um: com o primeiro existia uma proximidade muito grande, sendo a grande referência, o mais íntimo e inseparável; o segundo era um amigo com quem confraternizava de vez em quando; o terceiro, e último, era alguém que só raramente via.
Um dia, este homem recebe uma intimação para se apresentar diante do rei. Aflito, sem saber como apresentar-se e com medo de ir sozinho, recorre aos amigos citados: o mais íntimo, o primeiro, desculpa-se, dizendo que estará sempre com ele, menos nessa ida ao rei; o segundo afirma-se com alguma disponibilidade, mas avisa-o que só o acompanhará até à porta; o terceiro, aquele que raramente encontrava, foi o que se prontificou de imediato para o acompanhar.
Interpretação: o homem é cada um de nós; o rei que convoca é Deus; o momento para esse encontro é a morte; o primeiro amigo são todas as ocupações e preocupações, que nos acompanham, mas que desaparecem na morte; o segundo são os familiares e amigos, que acompanham, mas ficam à porta do cemitério; o terceiro é o bem, as boas obras, o amor gratuito, que acompanham para a eternidade.
Conclusão: às vezes é preciso reescalonar ou até inverter a ordem dos amigos, porque só o amor puro, que não se vive para receber algo em troca, é decisivo. Tal como no-lo recorda S. Paulo: tudo passa, só o amor permanece.
b) O morto e o ferido
Um mestre, aquando de um ensinamento sinagogal, desafia os seus discípulos a responderem à questão: “no caminho, diante de um homem já cadáver e de um homem ferido, qual socorrer primeiro?”. A resposta foi unânime: o ferido!
Mas o mestre corrige: primeiro o morto, porque esse não poderá “pagar” o bem feito e, por isso, o bem assim praticado é sem retorno, desinteressado!
c) Resumo da lei
Uma terceira situação, também na Sinagoga, é protagonizada por alguém que coloca uma mesma questão a dois mestres, um mais conservador e fechado e outro mais liberal e aberto. O desafio feito aos mestres consistia em resumir a Lei enquanto o individuo aguentava assente apenas em um dos pés. O mais conservador reage expulsando quem pensa que a Lei poderia ser resumida de forma tão breve. O outro respondeu enunciando a chamada “regra de ouro”: não faças ao outro o que não queres que te façam a ti.
Uma formulação negativa que, aparentemente, não será difícil de cumprir: basta cruzar os braços e nada fazer!
A novidade de Jesus Cristo
Os evangelhos enunciam esta regra, formulando-a positivamente: faz aos outros o que queres que te façam a ti! Já não é suficiente cruzar os braços, ficar à defesa.
Mas estas duas formulações padecem de um mesmo vício: a autorreferencialidade do homem e a perspectiva de uma recompensa (negócio) diante do bem praticado, diminuindo a gratuidade. Ainda neste domínio, a fórmula “ama o teu próximo como a ti mesmo” permite sair do raio de ação do verbo “fazer”, mas não livra do mesmo perigo da autorreferencialidade, na medida em que sou a medida desse amor. E, se alguém não se ama, também não saberá amar o outro!
Jesus apresenta e protagoniza a novidade que permite ultrapassar tal perigo: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. E Jesus amou até ao fim, dando a vida, vivendo um amor sem medida, doando a vida gratuitamente. Trata-se de um amor radical. Vivido de forma incondicional, sem esperar nada em troca, pura gratuidade.
Diante de tais ensinamentos, confrontados com a caminhada quaresmal, que se pretende ascendente, nunca será inoportuno que cada um se questione no sentido de saber como vive tal amor incondicional, puro e gratuito.
Joaquim Dionísio, in Voz de Lamego, n.º 4306, ano 85/19, de 24 de março de 2015