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Comentário | A gravidez condiciona a vida profissional?!
Ainda que seja natural a pergunta quando se pensa nos interesses empresariais, sobretudo ao nível da visão e missão, nomeadamente na perspetiva do lucro, a questão não deve colocar-se naqueles termos. A empresa, só pelo facto de o ser, não pode esquecer-se de que ela é servida e gerida pelas pessoas e, nestes termos, será ignóbil, mesquinho e desumano ignorar ou subestimar outros valores.
Demais, outros fatores condicionam a vida profissional, como, entre outros, doença, acidentes de trabalho ou de instalações e equipamentos, catástrofes naturais e vicissitudes do progresso, erros de gestão… Isto, para não falarmos dos incidentes de produção, circulação, distribuição e consumo ou dos desfalques, descalabros e desvios e erros de previsão e avaliação.
Há uns meses a esta parte (mais propriamente em junho passado), as vozes (de deputados, governantes e outras entidades) eram praticamente unânimes em assentir positivamente à denúncia pública da parte do Professor Doutor Joaquim Azevedo, Presidente do grupo de trabalho para estudo das medidas a tomar em prol da promoção da natalidade sobre empresários que exigiam um compromisso oral e/ou escrito da parte das candidatas a postos de trabalho nas respetivas empresas (que não identificou), de que não engravidariam num horizonte temporal de durante uns cinco ou seis anos. Também era referido que alguns empresários arranjavam formas relativamente fáceis de fazer cessar contratos de trabalho, uma vez verificada a situação de gravidez ou a de nascimento de criança, contra a linha defendida pela entidade patronal.
E parece que ficamos de boa consciência por termos apontado o dedo indicador justiceiro aos empresários do setor privado, porque supostamente o Estado assume, protege e promove os valores constantes das leis que elabora, promulga e publica. Porém, a história é bem outra.
O Público do dia 21 oferece um logo texto de denúncia do que se passa a este respeito num setor bem sensível da esfera pública. O texto jornalístico é de Catarina Gomes e a sua síntese enuncia-se deste modo: “Ordem [dos Médicos] denunciou o caso de várias médicas a quem, nos concursos de seleção para unidades do Serviço Nacional de Saúde, foi perguntado se pretendiam engravidar, algo que o bastonário veio condenar”.
É óbvio que tal género de interrogatório não se circunscreve aos serviços de saúde nem tão pouco ao setor público. A presidente da CITE, Sandra Ribeiro, revela que diariamente chegam à Linha Verde do serviço de informação gratuito da comissão (800 204 684), cerca de cinco queixas informais de mulheres a quem, no processo de recrutamento para trabalho, é perguntado algo como: ‘Então e bebés’?”. Aquela responsável diz que este tipo de práticas discriminatórias é transversal a todos os setores, não constituindo exceção a saúde.
Um e-mail enviado à CITE por uma anónima com a epígrafe “Desabafo” refere questões e advertências do inquérito de recrutamento, algumas das quais altamente provocatórias e as respetivas respostas: “É casada há quanto tempo?’ ‘Há cerca de três meses.’ ‘E bebés?”.
Tendo confessado que, de momento, não tencionava ter filhos, ter-se-á seguido a observação: “Já tem 34 anos, não pode atrasar muito mais!”. Perante a reiteração de que não tencionava ter filhos, uma vez que pretendia trabalhar por já estar desempregada há algum tempo, foi de novo confrontada com a advertência: “Sabe que a gravidez pode condicionar a vida profissional!”
Como refere – e muito bem – a responsável da CITE, este comportamento viola o princípio constitucional da igualdade e as normas do Código de Trabalho: “Temos noção de que é prática corrente perguntar às mulheres na fase de recrutamento se estão a pensar engravidar.” E não são apresentadas queixas formais por dois motivos: não haver forma como provar, dado que a entrevista se passa a sós com o entrevistador; e medo de retaliações por parte da empresa.
Por outro lado, a responsabilidade da aplicação de penalizações relativamente ao setor privado cabe à ACT, que pode aplicar coimas, que variam de acordo com o volume de negócio da empresa. Já, no setor público, compete às inspeções dos respetivos ministérios agir em conformidade, mas não está previsto qualquer sistema de contraordenações. Quando muito, pode haver lugar a procedimento disciplinar. Porém, se não há a queixa formal, com base em prova existente e apresentável e se passa o prazo para desencadear o procedimento, nada feito.
E passamos a vida a lamentar situações de escravização noutros países, sobretudo os pobres!
Louro de Carvalho, in VOZ DE LAMEGO, n.º 4291, ano 84/53, de 2 de dezembro de 2014