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Homilia de D. António Couto no Corpo de Deus, Sé Catedral

O PÃO QUE JESUS É E DÁ

 

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1. A passagem do Evangelho que tivemos a graça de escutar neste Dia Grande do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo é João 6,51-58. Esta passagem integra o imenso Capítulo sexto do Evangelho de S. João que, entre os versículos 25 e 59, se apresenta ritmado pelo esquema «pergunta-resposta». São cinco perguntas e cinco respostas. As perguntas saem da boca de uma «multidão» não identificada ou dos «judeus»; as respostas saem sempre da boca de Jesus.

2. Curiosamente, a passagem do Evangelho que hoje foi proclamada e escutada abre, no versículo 51, com a quarta resposta de Jesus à quarta pergunta dos «judeus», que tinha sido formulada atrás no versículo 42. A pergunta soava assim: «Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: “Eu desci do céu”?» (João 6,42). A esta pergunta, Jesus responde afirmando a sua verdadeira identidade: «Eu sou o pão vivo que desceu do céu (…), pão que é a minha carne, que eu darei para a vida do mundo» (João 6,51).

3. Esta resposta de Jesus, afirmando a sua identidade reveste-se de grande importância para o Dia de hoje, Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo. Na verdade, a resposta de Jesus contém todos os elementos que hoje importa considerar: «Eu sou o pão que desceu do céu», «esse pão é a minha carne», e «dará a vida». Mas depois desta resposta, que abre o texto de hoje, surge logo outra pergunta, que é a quinta, também colocada na boca dos judeus, e que vem no seguimento lógico da quarta resposta de Jesus, que acabámos de ouvir. A quinta pergunta soa assim: «Como pode este dar-nos a sua carne (sárx) a comer?» (João 6,52).

4. Na sua resposta, que preenche o resto do texto de hoje (João 6,53-58), Jesus fala de vida nova, e, por isso, também de alimento novo, consentâneo com essa vida nova. Esclarecedor, nesse sentido, é que o verbo «comer» apareça conjugado com «carne» (sárx), João 6,52.53.54.56), com «pão» (ártos) (João 6,51.58) e «comigo» (me) [«o que me come»] (João 6,57). Fica claro que «comer o pão descido do céu» é «comer a carne do Filho do Homem», e que as duas expressões são equivalentes de «comer a pessoa» de Jesus, a sua identidade, o seu modo de viver. Só assim, a vida verdadeira, a vida eterna, entra em nós e transforma a nossa vida, configurando-a com a de Jesus. Uma nova possibilidade entra na história humana. Tudo o que fica para trás, toda a história humana passada, pode resumir-se no maná, «que os vossos pais comeram, e morreram» (João 6,49.58a). Sim, o maná aparece em referência apenas com a vida terrena, e não tem nenhuma eficácia para além da morte. Ao contrário, o pão que Jesus é e dá não serve de sustento à vida terrena, e tão-pouco livra da morte: até o próprio Jesus morreu! Mas o pão que Jesus é dá a vida eterna (João 6,58b). Vem ainda à tona o tema grande da pertença mútua e permanente: «Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em Mim e Eu nele» (João 6,56). É a melhor e a mais realista tradução da nossa comunhão eucarística. Até o verbo «comer» ganha nesta passagem particular sabor e realismo. De facto, habitualmente, para dizer «comer», é usado o verbo grego esthíô. Todavia, em João 6,54.56.57.58, é usado um verbo «comer» muito mais forte, o verbo trôgô [= trincar, mastigar]. De forma significativa, este verbo só é usado nas passagens atrás assinaladas e em João 13,18, no contexto da ceia da Páscoa. Vida nova e eterna, ressuscitada. Comunhão e intimidade entre Deus e a Humanidade. Por isso e para isso, Jesus se fez um de nós, descendo ao nosso mundo, e dando-se completamente a nós, dando-nos a sua vida.

5. «Interroga a velha terra: responder-te-á sempre com o pão e o vinho». Estas palavras de Paul Claudel traduzem bem a nossa Eucaristia. Os sinais do pão e do vinho não mostram apenas o alimento físico, importante e indispensável, mas também estão presentes quando queremos manifestar a nossa comunhão na alegria (dias festivos) e na dor (veja-se a sua partilha em rituais fúnebres). Este segundo aspeto presente nos sinais do pão e do vinho é também um importante alimento da nossa vida. É o que Moisés diz com energia ao povo de Israel reunido na planície de Moab: «Nem só de pão vive o homem, mas de toda a Palavra que sai da boca de Deus» (Deuteronómio 8,3). Palavra, comunicação, comunhão, intimidade.

6. Aí está também hoje o grande texto da Primeira Carta de S. Paulo aos Coríntios 10,16-17, porventura a mais antiga e singela evocação da Eucaristia, que então se chamaria eulogía, isto é, «Bênção». «O cálice da Bênção (tò potêrion tês eulogías) que Bendizemos (eulogoûmen) não é comunhão (koinônía) no sangue de Cristo? O pão que partimos (kláô) não é comunhão (koinônía) no corpo de Cristo?» (1 Coríntios 10,16). O texto é singelo, condensado, fortíssimo. A bênção, hebraico berakah, é unitiva. Une, reúne, põe em comunhão. Se parte de Deus, recai sobre o homem, e volta a Deus, unindo Deus e o homem num círculo inquebrável. Se parte do homem, recai sobre Deus, e volta ao homem, unindo-os num círculo inquebrável. Pode também recair sobre outra pessoa ou outras pessoas, unindo sempre as duas partes num círculo inquebrável. Por aqui se vê bem a energia que «bendizer», «dizer bem», comporta. A Eucaristia é, na verdade, esta união ou comunhão entre Deus e o Homem, e de todos os membros da Assembleia cristã e orante entre si. O contrário de «bendizer» é «maldizer», «dizer mal». Bendizer une. Maldizer divide.

7. «Como é bom, como é belo, viverem unidos os irmãos» (Salmo 133,1). Saboreemos esta Alegria, o Pão e o Vinho da Alegria, nesta celebração da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, bem unidos e reunidos à volta do único Senhor da nossa vida, Jesus Cristo. Tradicionalmente, neste Dia, o Senhor da nossa vida presidirá e abençoará com a sua Presença, caminhando connosco, no meio de nós, em solene procissão, os caminhos das nossas aldeias e cidades. Quer isto dizer que o pálio de Deus atravessará as nossas aldeias e cidades. O pálio de Deus é o manto (pallium) de Deus, os braços carinhosos com que nos abraça e nos envolve, e nos pede para fazermos outro tanto, enchendo de graça e de esperança todos os nossos irmãos. Verdadeiramente, num mundo em crise como este em que vivemos, parece que voltamos a viver, como dizia S. Paulo aos Efésios, «sem esperança e sem Deus no mundo» (Efésios 2,12). Entenda-se: sem esperança, porque sem Deus no mundo, connosco, no meio de nós.

8. Jesus Cristo é Deus presente no nosso mundo todos os dias. E o pálio é o manto, o agasalho, o abraço, com que nos acalenta, acarinha e envolve. De pálio (pallium) vêm os cuidados paliativos, que não são apenas os cuidados médicos que são prestados aos nossos doentes terminais; são sobretudo a expressão de um amor maior, de um manto maior e mais quente, de um abraço caloroso que nos envolve e nos salva em todas as situações (Gianluigi Peruggia, L’abbraccio del mantello, Saronno, Monti, 2004).

Fica connosco, Senhor! Tu tens palavras de vida eterna!

+ António, vosso bispo e irmão

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